Jorge Luiz Borges - O Livro
Aula proferida na Universidade de Belgrano 1978
Traduzido de "Obras Completas IV" - Borges Oral - EMECE
Aula proferida na Universidade de Belgrano 1978
Traduzido de "Obras Completas IV" - Borges Oral - EMECE
Dentre os instrumentos inventados pelo homem, o mais impressionante é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da visão; o telefone uma extensão da voz e finalmente temos o arado e a espada, ambos extensões do braço. O livro, porém, é outra coisa. O livro é uma extensão da memória e da imaginação. [1]
Em César e Cleópatra de Shaw, quando se fala sobre a biblioteca de Alexandria [2], os livros são descritos como a memória da humanidade.
O livro é isto e muito mais, é também a imaginação. O que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Afinal que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado ? [4] A função do livro é recordar [5]. Pensei, certa vez, em escrever uma história do livro, não do ponto de vista físico. Os livros não me interessam fisicamente - sobretudo as coleções dos bibliófilos, em geral imensas -, mas sim como eles podem ser avaliados ao longo do tempo. [6]
Splenger me antecipou, em seu livro "Decadência do Ocidente" onde têm páginas preciosas sobre o livro. Com alguma pitada pessoal penso ater-me aqui ao que disse Spengler.
Os antigos não professavam nosso culto ao livro - coisa que me surpreende. Para eles o livro é um sucedâneo da palavra oral. A frase latina "Verba volant, scripta manet" não quer dizer que a palavra oral seja volátil, mas sim que a palavra escrita permanecerá e está morta [7]. Por sua vez a palavra oral tem algo de sutil, volátil, sublime e sagrado, como disse Platão[8]. Todos os mestres da humanidade foram, curiosamente, mestres orais [9]. Vejamos o primeiro caso: Pitágoras. Sabemos que, deliberadamente, Pitágoras nada escreveu. Pitágoras não escreveu porque não quis [10]. Não escreveu porque não desejava limitar-se à palavra escrita. Sentiu sem dúvida que a letra mata mas o espírito vivifica; o que, mais tarde, será citado na Bíblia. Ele deve ter sentido isto, e não quiz limitar-se à palavra escrita, por isto Aristóteles nunca fala de Pitágoras, mas sim dos Pitagóricos[11]. Nos disse por exemplo que os pitagóricos professavam a crença, o dogma, do eterno retorno [12], que mais tarde foi redescoberto por Nietzsche [13]. Ou seja, a idéia do tempo cíclico, que foi refutada por Santo Agostinho em Cidade de Deus. Santo Agostinho nos diz, através de uma linda metáfora, que a cruz de Cristo nos salva do labirinto circular dos estóicos [14]. A idéia de um tempo cíclico também foi revista por Hume, Blanqui e tantos outros [15].
Pitágoras não escreveu porque não quis. Queria que seu pensamento permanecesse vivo além de sua morte física, na mente de seus discípulos. Daqui veio aquele ditado (eu não sei grego, tratarei de dizê-lo em Latim) "Magister dixit" (o mestre assim disse ). Isto não significa que estivessem limitados ao que o mestre havia dito, ao contrário, afirmavam a liberdade de continuarem refletindo o pensamento original do mestre.
Não sabemos se Pitágoras foi o iniciador da doutrina do tempo cíclico, porém sabemos que seus discípulos a professavam. Pitágoras morre físicamente e eles, por um tipo de transmigração - e isto teria agradado a Pitágoras - seguem pensando e repensando seu pensamento, [16] e quando se reprovam ao dizer algo novo, se refugiam naquela fórmula: "assim disse o Mestre - Magister Dixit."
Porém temos outros exemplos. Platão, em um exemplo ilustre, disse que os livros são como esfinges (pode ter pensado em esculturas ou em quadros), que nós cremos que estão vivas, porém se lhes perguntamos sobre alguma coisa elas nada respondem. Então para corrigir esta mudez dos livros, ele inventa o diálogo platônico. Digamos que Platão multiplica-se em vários personagens: Sócrates, Gorgias e os demais [19]. Também podemos pensar que Platão queria consolar-se da morte de Sócrates imaginando que este seguiria vivendo em seus Diálogos. Frente a qualquer questão Platão perguntava-se: "O que Sócrates pensaria a respeito disto?". Deste modo Platão imortalizou Sócrates, que também não deixou nada escrito e foi um mestre oral. [20].
Sabemos que Cristo escreveu uma única vez algumas palavras na areia que o vento acabou apagando [21]. Ao que se saiba não escreveu mais nada. Buda também foi um mestre oral e só ficaram suas prédicas [22]. Temos uma frase de Santo Anselmo "um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso quanto uma espada nas mãos de uma criança" [23] . Isto é o que se pensava dos livros.
No Oriente existe ainda um conceito de que um livro não deve revelar as coisas, um livro deve, simplesmente, ajudar-nos a descobri-las. Apesar de minha ignorância do Hebráico, estudei algo da Cabala. Li as versões inglesas e alemãs do Zohar (O Livro do Esplendor), El Sefer Yezira (O Livro das Relações). Sei que estes livros não estão escritos para serem entendidos, porém para serem interpretados , são desafios para que o leitor continue a pensar [24].
A antiguidade clássica não teve este nosso respeito pelo livro, embora saibamos que Alexandre da Macedônia tinha, em baixo do travesseiro, a Ilíada e a espada, estas duas armas [25]. Havia grande respeito por Homero, porém não era considerado um escritor sagrado no sentido que temos hoje pela palavra. Não se pensava na Ilíada e naOdisseia como textos sagrados, eram livros respeitados, porém podiam ser criticados [26]. Platão pode expulsar os poetas de sua República sem cair em suspeita de heresia [27].
Do testemunho dos antigos contra os livros podemos apontar um muito curioso de Sêneca. Em
suas admiráveis cartas a Lucílio, tem uma dirigida contra um indivíduo muito vaidoso, de quem se diz que tem uma biblioteca de cem volumes; e quem - pergunta Sêneca - pode ter tempo para ler cem volumes [28]? Por outro lado hoje se apreciam bibliotecas grandes. Na antiguidade tem uma coisa de difícil compreensão, que não se parece com nosso culto ao livro. O livro sempre é visto como uma extensão da palavra oral [29], porém surge no Oriente um conceito novo, de todo estranho à antiguidade clássica: a do livro sagrado . Vamos tomar dois exemplos, começando pelo mais recente: os muçulmanos. Eles pensam que o Alcorão [Do ár. al-qurAYn, 'o que deve ser recitado] é anterior à criação, anterior à língua árabe; é um dos atributos de Deus, não é uma obra de Deus, é como se fosse sua misericórdia ou sua justiça. No Alcorão se fala de uma forma muito estranha do livro original. Este livro é um exemplar do Alcorão escrito no céu [30]. Talvez venha a ser o arquétipo ideal de Platão do Alcorão, e este mesmo livro, nos diz o Alcorão, que está escrito no céu, que é o atributo de Deus e anterior à criação [31]. Assim nos dizem os suleimans, os doutores muçulmanos [32].
Temos outros exemplos mais próximos de nós: A Bíblia, ou mais precisamente o Tora ou o Pentateuco [33]. Acredita-se que estes livros foram ditados pelo Espírito Santo [34]. Isto é um fato interessante: atribuir a livros de diversos autores e épocas diferentes a um único espírito [35], porém a própria Bíblia diz que o Espírito sopra de onde quer [36]. Os hebreus tiveram a ideia de juntar obras literárias de diversas épocas e formar com elas um único livro, cujo título é Tora, ou Bíblia em Grego [37]. A todos estes livros atribuem a um único autor: O Espírito.
A Bernard Shaw perguntaram uma vez se acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: Todo livro que vale a pena ser lido foi escrito pelo Espírito [38]. Eu acrescento: Todo livro que vale a pena ser relido foi escrito pelo Espírito. Vale dizer, um livro tem que ir além da intenção de seu autor. A intenção do autor é uma pobre coisa humana, falível, porém o livro tem que ir além [39]. Don Quijote por exemplo, é mais do que uma sátira aos livros de cavalaria. É um texto absoluto em que nada é improvisado [40]. Pensemos nas consequências desta ideia. Por exemplo se digo:
Correntes águas, puras, cristalinas,
árvores que estais refletindo nelas
verde prado, cheio de frescas sombras. [41].
é evidente que os três versos contém onze sílabas. Assim quiz o autor, é voluntário.
Porém o que é isto comparado com uma obra escrita pelo Espírito, o que é isto comparado com o conceito de Divindade, que se curva frente à literatura e dita um livro [42]. Neste livro nada poderia ser ao acaso, tudo teria que estar justificado, letra a letra. Entende-se, por exemplo que o início da Bíblia: Bereshit bara Elohim, [43] começa com a letra B, porque isto corresponde a bendizer [44]. Trata-se de um livro em que nada é ao acaso, absolutamente nada. Isto nos leva à Cabala, nos leva ao estudo das letras de um livro sagrado ditado por uma divindade, que vem a ser o contrário do que pensavam os antigos [45]. Estes pensavam na musa de um modo bastante vago. "Canta, musa, a cólera de Aquiles" diz Homero no princípio da Ilíada. A musa tem, aqui, o seu correspondente à inspiração [46]. Por outro lado pensar no Espírito é pensar em coisa mais concreta, mais forte: Deus, que nos condescende a literatura [47]. É Deus que escreve um livro; e neste livro nada é ao acaso, nem o número de letras nem a quantidade de sílabas de cada versículo, nem o fato de que possamos fazer jogos de palavras com as letras, de que possamos considerar o valor numérico das letras [48]. Tudo foi previsto. O segundo grande conceito dos livros - repito - é que ele pode ser uma obra divina [49]. Talvez isto esteja mais próximo daquilo que sentimos agora sentimos do que da ideia que os antigos tinham dos livros, quer dizer, o livro é um mero sucedâneo da palavra oral [50]. Logo que cai a crença do livro sagrado ela é substituída por outras crenças. Por exemplo a de que cada país está representado por um livro. Recordemos que os mulçumanos dominam aos judeus, o povo do livro; recordemos a frase de Heinrich Heine sobre uma nação cuja pátria era um livro: a Biblia dos judeus. [51]
Temos então um novo conceito, o de que cada país tem pode ser representado por um livro, ou ao menos por um autor, que pode ser autor de muitos livros. É curioso, não creio que isto tenha sido observado antes, que os países elejam para seus representantes autores que não se parecem com eles. Alguém poderia pensar, por exemplo, que a Inglaterra poderia escolher Doutor Johnson como seu representante. Porém não! A Inglaterra escolheu Shakespeare, e Shakespeare é, digamos assim, o menos inglês dos escritores ingleses. O típico da Inglaterra é o Understatement, que significa dizer um pouco menos sobre as coisas. Ao contrário, Shakespeare tendia à hipérbole na metáfora e não nos surpreenderia que Shakespeare tivesse sido, por exemplo, italiano ou judeu. Outro caso é o da Alemanha. Um país admirável, tão facilmente fanático, que elege precisamente um homem tolerante, que não é fanático, e a quem o conceito de pátria não é demasiadamente importante, elege Goethe. A Alemanha é representada por Goethe.
Na França não se elege um autor, porém temos Victor Hugo. Desde logo, sinto uma grande admiraçãopor Hugo, porém Hugo não é típicamente francês. Hugo é estrangeiro na França, com este estilo decorativo, com estas vastas metáforas, não é típico da França.
Outro caso ainda mais curioso é o da Espanha. A Espanha poderia ter sido representada por Lope, Calderón, por Quevedo, porém a Espanha é representada por Miguel de Cervantes.
Cervantes é um homem contemporâneo da Inquisição, porém é tolerante, é um homem que não tem nem as virtudes nem os vícios espanhóis. É como se cada país pensasse ser representado por alguém diferente dele mesmo, por alguém que possa ser, um pouco, uma espécie de remédio, uma espécie de "triaca" , um antídoto contra seus defeitos. Nós, os argentinos, poderíamos ter escolhido Facundo de Sarmiento, que é nosso livro, porém não; nós com nossa história militar, nossa história de espada, elegemos como livro a crônica de um desertor, elegemos el Martín Fierro, que bem merece ser eleito como livro. Como pensar que nossa história está representada por um desertor da conquista do deserto? Porém, assim é, como se cada país sentisse esta necessidade. Vários escritores escreveram de modo brilhante sobre os livros. Quero referir-me a uns poucos. Primeiro me concentrarei em Montaigne, que dedica um de seus ensaios ao livro. Neste ensaio tem uma frase memorável: Não faço nada sem alegria. Montaigne mostra que o conceito de leitura obrigatória é um conceito falso. Diz que ao encontrar uma passagem difícil em um livro, deixa-o: porque vê na leitura uma forma de felicidade. Recordo-me que há muitos anos realizou-se uma pesquisa sobre o que é a pintura. Perguntaram à minha irmã Norah e ela respondeu que a pintura é a arte de mostrar com alegria as formas e as cores. Eu diria que a literatura também é uma forma de alegria. Se lemos alguma coisa com dificuldade, o autor fracassou. Por isto considero que um escritor como Joyce essencialmente fracassou, porque sua obra requer esforço para ser lida. Uma leitura, um livro, não deve demandar esforços pois a felicidade não demanda sacrifícios. Penso que Montaigne está certo. Montaigne enumera os livros de que gosta. Citando Virgílio, ele diz preferir as Geórgicas à Eneida porém isto não é importante. Montaigne fala dos livros com paixão, diz que, embora os livros sejam uma forma de felicidade, são contudo um lânguido prazer. Emerson o contradiz. Eis um outro grande trabalho sobre o livro. Nesta conferência Emerson diz que uma biblioteca é uma espécie de salão mágico. Neste salão estão presos os melhores espíritos da humanidade, porém esperam nossa palavra para sair de sua mudez. Temos que abrir os livros e então eles despertam. Diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais.
Emerson diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais. Fui professor de literatura inglesa durante vinte anos, na Faculdad de Filosofia y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Sempre digo aos meus alunos que tenham pouca bibliografia, que não leiam as críticas, que leiam diretamente os livros. Talvez entendam pouco, porém sempre terão o gozo de ouvir a voz de alguém. Eu diria que o mais importante de um autor é sua entonação, o mais importante de um livro é a voz do autor, esta voz que chega até nós. Dediquei parte de minha vida às letras, e creio que a leitura é uma forma de felicidade. Outra forma de felicidade menor é a criação poética, ou aquilo a que chamamos de criação, que é uma mistura de esquecimento e lembrança do que lemos. Emerson concorda com Montaigne sobre o fato de que devemos ler somente aquilo que nos agrada e que um livro tem que ser uma forma de felicidade. Devemos tanto às letras. Eu procuro mais reler do que ler. Creio que reler é mais importante, embora para se reler seja necessário ter lido uma primeira vez. Eu tenho este culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo tolo e não quero ser tolo, quero que seja uma confidência que faça a cada um de vocês, não a todos, porém a cada um, pois todos é uma abstração e cada um é concreto. Continuo achando que não sou cego pois prossigo comprando livros e enchendo minha casa deles. Outro dia presentearam-me com uma edição de 1966 da Enzyklopadie Brockhaus e eu senti a presença deste livro em minha casa, senti-a como uma forma de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e, apesar disto, o livro estava ali. Eu o sentia como uma atração amistosa. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que nós, humanos, temos. Dizem que o livro desaparecerá, eu creio que é impossível. Perguntam: que diferença pode haver entre um livro e uma revista ou um disco? A diferença é que uma revista é para ser lida e esquecida, um disco se ouve, e mesmo assim, para o esquecimento, é uma coisa mecânica e portanto frívola. Um livro se lê para a memória. O conceito de livro sagrado, do Alcorão, da Bíblia e dos Vedas - onde também se diz que os Vedas criaram o mundo - pode estar ultrapassado, porém o livro tem uma espécie de santidade que devemos cuidar para que não se perca. Pegar um livro e abri-lo guarda a possibilidade do fato estético. Quais são as palavras inseridas no livro? O que são estes símbolos mortos? É simplesmente um cubo de papel e couro, com folhas. Porém se o lermos ocorre uma coisa rara, creio que ele muda a cada momento. Heráclito disse (e tenho repetido isto em demasia) que nada se banha duas vezes no mesmo rio. Nada se baixa duas vezes no mesmo rio porque as águas mudam porém, o mais terrível, é que nós mesmos não somos menos fluídos que um rio.
Cada vez que lemos um livro, o livro se modifica, a conotação das palavras é outra. Além disto, os livros estão carregados de passado. Tenho falado contra a crítica e vou aqui ser contraditório (porém o que me importa ser contraditório).
Hamlet não é exatamente Hamlet que Shakespeare concebeu no início do século 17. Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de Bradley. O mesmo se passa com o Quijote. Igual se sucede com Lugones e Martínez Estrada, o Martin Fierro já não é o mesmo. Os leitores acabam enriquecendo o livro. Se lemos um livro antigo, é como se o tivéssemos lido durante todo o tempo transcorrido entre o dia que foi escrito e o nosso tempo. Por isto convém manter o culto ao livro. O livro pode estar cheio de erratas, podemos não concordar com as opiniões do autor, porém ele conserva algo de sagrado, de divino, não de modo supersticioso, mas com o desejo de encontrar a felicidade, de encontrar a sabedoria. Isto é o que queria dizer-lhes hoje.
Buenos Aires, 24/05/1978
Comentários : Antonio Brito @abrito1953
[1] A visão é indispensável ao leitor. Borges não enxergava há vinte anos. Instrumentos sondam o infinito, o telescópio, ou penetram no infinitamente pequeno, o microscópio, definem os limites da imaginação e do conhecimento. O telefone tem como meio a palavra oral e o livro é o registro da palavra escrita. O arado e a espada têm funções opostas: um cria a vida outro a ceifa. Uma das esperanças do Profeta Isaías 2:4 E a espada se converterá em lâmina do arado.
[2] A biblioteca mais famosa da antiguidade, parte de um Museu de estudos em Alexandria, Egito. Continha literatura grega e traduções. Sobreviveu por 500 anos e foi destruída em uma guerra civil no império de Aureliano no século 3 D.C. Alexandria foi o centro da cultura helênica e dos debates na Igreja Cristã primitiva. No Poema de los dones Borges refere-se à queima dos manuscritos de Alexandria.
[3] As duas funções do livro: estimular a imaginação e registrar o conhecimento, a memória. Enquanto a imaginação se alimenta dos sonhos, naquilo que não têm existência real, a memória é o conhecimento da vida. A memória é a matéria da literatura. O autor registra sua imaginação e memória para a posteridade através da escrita.
[4] Através da recordação o sentido de tempo se perde. O sonho pode estar associado em advinhar o futuro. Recordar sonhos seria visitar um espaço futuro. Porém a função de recordar une passado e futuro. No Poema de los dones, Borges refere-se a sonhos e esquecimentos.
[5] Borges utiliza-se de antíteses:
sonhar e recordar,
memória e imaginação,
futuro e passado,
palavra oral e escrita,
com a síntese:a função do livro é recordar
[6] O livro físico tal como concebemos é uma invenção que surge com a prensa de Gutemberg em 1439. O livro como um repositório de informação não interessa à Borges. O que importa é o texto, que tanto pode ser impresso em um pedra, uma folha de papel ou em um dispositivo digital como este.
[7] "a palavra oral se dispersa ao vento enquanto o escrito é permanente". Por "antigos" podemos atribuir à cultura Grega antes de Platão. Antes de ser consolidado em uma forma escrita, não necessariamente um livro, porém em folhas avulsas, os poemas de Homero eram recitados com o acompanhamento da lira, um instrumento musical, daí a lírica. Porém ao dizer que a palavra escrita está morta indica que ela não tem voz, está muda, logo sem vida. Borges lamente a falta do culto à palavra impressa, o livro, porém logo a seguir cria uma ambiguidade colocando em relevo a palavra oral.
[8] Em Fedro, Platão expõe a desconfiança de Sócrates sobre a palavra escrita. Em A República ele não recomenda a poesia como método de ensino, como se fazia até então com os poemas orais de Homero. Para Platão, decorar poemas inibe o raciocínio do aluno
[9] Os mestres da antiguidade: Jesus Cristo, Buda e Sócrates nada escreveram. Como professores não acreditavam na escrita como ferramenta de ensino. Veja um artigo a respeito. : Ensino oral e escrito.
[10] Pitágoras viveu entre 570 a 495 antes de Cristo. Porém escritos sobre Pitágoras surgiram somente duzentos anos depois. A escola de Pitágoras era uma seita que praticava o ocultismo, que influenciou a maçonaria e a seita rosacruz, cujo conhecimento só era transmitido aos iniciados. Os segredos dos pitagóricos, não poderiam, evidentemente, serem publicados e nem Pitágoras assim desejaria. A filosofia pitagórica influenciou Platão e Aristóteles e até hoje estuda-se o "teorema de Pitágoras".
[11] Em Metafísica [1-5] Aristóteles afirma "os pitagóricos imaginam que a matemática é o princípio de todas as coisas". O ensaio de Aristóteles sobre os pitatógricos desapareceu, alguma parte dele está no ensaio Protepticus.
[12] O eterno retorno dos pitagóricos refere-se à reencarnação. Acreditavam na transmigração das almas, ou seja que elas poderiam depois de mortas reencarnar tanto entre os animais como entre os homens.
[13] O eterno retorno dos estóicos, retomado por Nietzsche (1834-1900), refere-se à repetição, no tempo, das ações. O tempo não seria uma sequência linear porém cíclica.
[14] Não consigo encontrar esta referência. Caso saiba, por favor contacte-me.
[15] Hume (1711-1776.) Embora o inglês David Hume tenha influenciado a filosofia e as ciências experimentais não consta nenhum ensaio , Blanqui (1805-1881) O político e filósofo francês baseava na cosmologia de Newton no qual os mundos eram infinitos e o tempo eterno. Sob este argumento não seria impossível que em outros mundos estivessem sendo repetidos os mesmos fenômenos que estão acontecendo simultâneamente.
[16] Os pitágoricos finalizavam seus teoremas com a frase em grego "autos ephe αυτός εφέ" (Assim disse o Mestre, ou em Latim Magister Dixit"), com ênfase no caráter oral do ensinamento.
[17] A doutrina do tempo cíclico veio da Ásia com os hindus e foi adotada pelos pitagóricos.
[18] A questão do escrita como uma "letra morta", no qual o leitor pode fazer perguntas porém o autor não pode respondê-las, nem defender-se de seus críticos está analisada em detalhe em ensino oral e escrita.
[19] Platão, diferente de Aristóteles, não escreve ensaios. Utiliza-se dos diálogos, como no teatro, onde os personagens possuem pontos de vista diferentes, até opostos, a dialética, e acabam por chegar a uma conclusão, síntese.
[20] No diálogo Fédon , Platão descreve a morte de Sócrates e faz uma reflexão sobre a imortalidade da alma. Ao registrar através da escrita Platão consolida os ensinamentos de Sócrates. Através da escrita morre o autor, sobrevive o personagem. Sócrates tornou-se imortal como um personagem de Platão.
[21] João 8:6 "Mas Jesus, inclinando-se escrevia na areia com o dedo".
[22] Buda viveu entre os séculos 5 e 6 antes de Cristo. Também conhecido por Gautama e Sidarta. Seus discursos foram consolidados, embora não exista um único cânone, no conjunto Tipitaka que compõe 3 áreas por assunto pitaka (disciplina, discursos, ensinamento superior).
[23] No ensaio "o culto aos livros" incluso em Outras Inquisições (1951), Borges indica que o livro é tão perigoso como uma espada nas mãos de uma criança, deve-se a Clemente de Alexandria (150-215). Em seu Stromata quando se refere à utilidade do texto escrito diz que o autor necessita ter cuidado na escrita pois o texto pode ter nas mãos de um leitor desavisado o mesmo efeito quando uma criança encontra uma espada. Não consta que Santo Anselmo tenha dito algo a respeito.
[24] Desde 1931 Borges iniciou um diálogo com a interpretação da Cabala. Saiba mais em Borges e a Cabala.
[25] Na palestra sobre La Kábala Borges atribui esta citação à Plutarco sobre Alexandre. Para Alexandre a Ilíada é um guia sobre a arte da guerra. O conquistador, discípulo de Aristóteles, mantinha sobre o travesseiro sua adaga e a Ilíada ("always kept it lying with this dagger under his pillow").
[26] As duas fontes da literatura são os clássicos gregos, como a Ilíada e a Odisseia e os textos sagrados como a Bíblia.
[27]Platão condena os poemas de Homero porém não comete heresia, afinal a Odisséia não é um livro sagrado. No livro X da República Platão "Homero é o maior poeta e o primeiro a escrever as tragédias, porém permaneço firme em minha convicção que os hinos aos Deuses e os ensaios de elogio aos grandes homens é a única poesia que deveria ser admitida em nossa República. Pois se irmos além disto a canto doce das musas entrarão, quer nos versos épicos como nos líricos, e impedirá a difusão das leis e da razão entre os homens". Saiba mais.
[28] Borges confunde a advertência de Seneca com o episódio do bibliófilo Pietro Pomponazzi (1462-1525). Deixou como herança o que era considerado uma grande biblioteca, tinha menos de cem volumes. Em Carta a Lucílio Sêneca adverte-o da leitura superficial "A abundância de livros é fonte de dispersão; assim, como não poderás ler tudo quanto possuis, contenta-te em possuir apenas o que possas ler. Dirás tu: "Mas sinto vontade de folhear ora este livro, ora aquele ... Lê, portanto, constantemente autores de confiança e quando sentires vontade de passar a outros, regressa aos primeiros" Livro I carta II Cartas a Lucílio.
[29] Somente a partir de 1800 o livro e o jornal passaram a estar o alcance de todos, antes da imprensa somente os monges e poucos professores tinham acesso ao texto. Antes de consolidado no texto os poemas de Homero eram transmitidos oralmente, como os cantadores, rapsodos, nas feiras populares.
[30] O Alcorão foi escrito, na língua árabe da entre 610 e 632 pelo profeta Maomé a partir de uma revelação feita pelo anjo Gabriel.. No próprio Alcorão ele se define como um livro único e perfeito que está guardado, as cópias físicas são uma representação deste texto oculto. O texto se define como definitivo, onde nada foi omitido, é para ser usado de forma oral como um recital não para ser interpretado. Uma crítica do ponto de vista literário ao Alcorão foi feita por Edward Gibbon (1737-1794) ao verificar as inconsistências e redundâncias do texto "Se a composição do Koran é superior às faculdades humanas, então que inteligência superior poderia ter escrito a Ilíada de Homero?" (Declínio e Queda do Império Romano, Capítulo 50).
[31] Borges retoma Platão sobre outro tema, o mundo ideal, onde estão as idéias imutáveis que não podem ser modificadas pela ação humana, como o Alcorão, do qual deriva todas as formas e representações terrestres. Os muçulmanos podem ter adotado o conceito de Platão das idéias perfeitas.
[32] "assim nos dizem os doutores" , Borges retorna ao "Assim disse o Mestre" dos pitagóricos. Pode ser lido com uma ponta de ironia.
[33] O Pentateuco compreende os cinco livros da bíblia judaíca (Gênesis - Bereshit - No começo, Exodus - Shemot - Nomes, Leviticus - Vayikra - Chamado, Números - Bamidbar - No deserto, Deuterônimo - Dvarim - Palavras). `Como os mulçumanos os judeus acreditam que o Tora (ensinamento) foi escrito antes da criação. Diferente deles os judeus interpretam e discutem a compreensão do texto.
[34] Os profestas, como Moisés, são aqueles que revelaram a vontade divina, são escrivães do Espírito Santo.
[35] Umberto Eco em um ensaio ironiza o fato de que seria difícil pagar os direitos autorais dos autores da Biblia.
[36] "O vento sopra aonde quer. Você escuta sua voz, mas não pode dizer de onde veio nem para onde vai. Assim é todo aquele nascido no Espírito." João 3:8.
[37] Tora em Hebreu significa instrução, ensinamento. Para o cristianismo ele é o Pentateuco. Bíblia do grego (os livros) para os cristão reúne os textos sagrados que os cristãos acreditam ser um produto da inspiração divina e que regulam as relações entre os Homens e Deus.
[38] Borges reproduz uma ironia de Bernard Shaw (de cujo origem não consigo identificar), dizendo de outro modo "nem tudo o que foi escrito vale a pena ser lido". Na Cabala acredita-se que quando escrevemos é Deus quem escreve.
[39] Borges chama a atenção para o papel do leitor, da recepção do texto. A intenção do autor é o início da escrita, porém o livro só se concretiza depois de várias leituras e releituras, O texto está além da intenção do autor, a obra só se consolida com a ação dos leitores.
Veja Umberto Eco A construção do leitor.
[40] Don Quixote é uma releitura dos livros de cavalaria com ironia e crítica. Nada é improvisado, é como se fosse uma poesia, onde cada sílaba está presa à métrica e ao ritmo. Borges trata o Don Quixote como se fosse um livro sagrado, absoluto, um livro perfeito.
[41[ A estrofe em 12 sílabas de três versos, como Dante. Possivelmente Borges usa esta estrofe como uma ilustração de um texto onde nada é improvisado, o poema. Dante como Cervantes segundo Borges produzem um texto perfeito.
[42] Os versos de improviso são uma intenção do autor, segue uma forma. A divindade é superior, curva-se à literatura, porém dela necessita na comunicação com os homens.
[43] "No princípio Deus criou os céus e a terra" Gênesis 1:1. Do Hebreu, Bereshit = Gênesis, no começo. Bara : do nada: Elohim : Deus, aquele que veio do céu." A consoante "Bet" é a primeira consoante, ao passo que a vogal "Aleph" é tida como uma consoante fraca. Na Cabala a letra "Bet" "ב" o traço superior é Deus, a linha vertical é o que vem do céu e o traço inferior são os humanos na terra. Na Cabala justifica=se começar a Biblia com "Bet" pois o traço vertical significa a conexão entre os homens e Deus.
[44] Bendizer vem do Latim Bene +dicere, ou Bem Dito. A explicação de que a Bíblia começa com "B" de Bendito, é somente uma forma de expressão, não uma justificativa
[45] O estudo da Cabala visa exatamente buscar a relações precisas que estão no texto sagrado. .
[46] O poeta Homero não procura no ínicio do canto uma palavra "perfeita", simplesmente pede às Musas, as doze deusas filhas da Memória (Mnemosyne) que lembrem ao poeta cego (acredita-se que o cego pode conversar com espíritos que os vivos desconhecem) os versos da epopeia. O poeta se coloca na posição de um escrivão, não de um compositor criador. Porém o texto homérico não é uma ligação entre os homens e os Deuses, é uma narrativa das ações humanas na qual os Deuses tomam parte.
[47] Condescender no sentido que Deus permitiu que os homens tivessem a capacidade da linguagem que mais tarde se transforma na escrita ou seja na literatura.
[48] O verso metrificado procura um ritmo das palavras e uma forma numérica na associação das sílabas. Associar as palavras a números e encontrar o valor numérico do texto bíblico é tarefa dos estudantes da Cabala.
[49] Tanto os antigos, gregos e romanos, como os escritores da Bíblia tinham o noção que o papel do autor era transmitir um conhecimento ou sabedoria dos Deuses, ou de Deus, aos homens. A diferença é que os antigos não usavam o texto com uma finalidade de religiosa nem de conduta para ação humana, como o texto sagrado.
[50] O poema homérico era cantado, como uma canção, e sua criação foi uma inspiração das Musas, daí o sentido de música e lírica, que sucedeu ser compilado, escrito e lido.
[51] "A bíblia é a crônica familiar dos judeus" - Jessica, Heine. A nação representando o povo judaico tem um livro como única referência de pátria.
EL LIBRO
Jorge Luis Borges
De los diversos instrumentos del hombre, el más asombroso es, sin duda, el libro. Los demás son extensiones de su cuerpo. El microscopio, el telescopio, son extensiones de su vista; el teléfono es extensión de la voz; luego tenemos el arado y la espada, extensiones de su brazo. Pero el libro es otra cosa: el libro es una extensión de la memoria y de la imaginación.
En César y Cleopatra de Shaw, cuando se habla de la biblioteca de Alejandría se dice que es la memoria de la humanidad. Eso es el libro y es algo más también, la imaginación. Porque, ¿qué es nuestro pasado sino una serie de sueños? ¿Qué diferencia puede haber entre recordar sueños y recordar el pasado? Esa es la función que realiza el libro.
Yo he pensado, alguna vez, escribir una historia del libro. No desde el punto de vista físico. No me interesan los libros físicamente (sobre todo los libros de los bibliófilos, que suelen ser desmesurados), sino las diversas valoraciones que el libro ha recibido. He sido anticipado por Spengler, en su Decadencia de Occidente, donde hay páginas preciosas sobre el libro. Con alguna observación personal, pienso atenerme a lo que dice Spengler.
Los antiguos no profesaban nuestro culto del libro —cosa que me sorprende; veían en el libro un sucedáneo de la palabra oral. Aquella frase que se cita siempre: Scripta manent, verba volant, no significa que la palabra oral sea efímera, sino que la palabra escrita es algo duradero y muerto. En cambio, la palabra oral tiene algo de alado, de liviano; alado y sagrado, como dijo Platón. Todos los grandes maestros de la humanidad han sido, curiosamente, maestros orales.
Tomaremos el primer caso: Pitágoras. Sabemos que Pitágoras no escribió deliberadamente. No escribió porque no quiso atarse a una palabra escrita. Sintió, sin duda, aquello de que la letra mata y el espíritu vivifica, que vendría después en la Biblia. El debió sentir eso, no quiso atarse a una palabra escrita; por eso Aristóteles no habla nunca de Pitágoras, sino de los pitagóricos. Nos dice, por ejemplo, que los pitagóricos profesaban la creencia, el dogma, del eterno retorno, que muy tardíamente descubriría Nietzsche. Es decir, la idea del tiempo cíclico, que fue refutada por San Agustín en La ciudad de Dios. San Agustín dice con una hermosa metáfora que la cruz de Cristo nos salva del laberinto circular de los estoicos. La idea de un tiempo cíclico fue rozada también por Hume, por Blanqui... y por tantos otros.
Pitágoras no escribió voluntariamente, quería que su pensamiento viviese más allá de su muerte corporal, en la mente de sus discípulos. Aquí vino aquello de (yo no sé griego, trataré de decirlo en latín) Magister dixit (el maestro lo ha dicho). Esto no significa que estuvieran atados porque el maestro lo había dicho; por el contrario, afirma la libertad de seguir pensando el pensamiento inicial del maestro.
No sabemos si inició la doctrina del tiempo cíclico, pero sí sabemos que sus discípulos la profesaban. Pitágoras muere corporalmente y ellos, por una suerte de transmigración —esto le hubiera gustado a Pitágoras— siguen pensando y repensando su pensamiento, y cuando se les reprocha el decir algo nuevo, se refugian en aquella fórmula: el maestro lo ha dicho (Magister dixit).
Pero tenemos otros ejemplos. Tenemos el alto ejemplo de Platón, cuando dice que los libros son como efigies (puede haber estado pensando en esculturas o en cuadros), que uno cree que están vivas, pero si se les pregunta algo no contestan. Entonces, para corregir esa mudez de los libros, inventa el diálogo platónico. Es decir, Platón se multiplica en muchos personajes: Sócrates, Gorgias y los demás. También podemos pensar que Platón quería consolarse de la muerte de Sócrates pensando que Sócrates seguía viviendo. Frente a todo problema él se decía: ¿qué hubiera dicho Sócrates de esto? Así, de algún modo, fue la inmortalidad de Sócrates, quien no dejó nada escrito, y también un maestro oral. De Cristo sabemos que escribió una sola vez algunas palabras que la arena se encargó de borrar. No escribió otra cosa que sepamos. El Buda fue también un maestro oral; quedan sus prédicas. Luego tenemos una frase de San Anselmo: Poner un libro en manos de un ignorante es tan peligroso como poner una espada en manos de un niño. Se pensaba así de los libros. En todo Oriente existe aún el concepto de que un libro no debe revelar las cosas; un libro debe, simplemente, ayudarnos a descubrirlas. A pesar de mi ignorancia del hebreo, he estudiado algo de la Cábala y he leído las versiones inglesas y alemanas del Zohar (El libro del esplendor), El Séfer Yezira (El libro de las relaciones). Sé que esos libros no están escritos para ser entendidos, están hechos para ser interpretados, son acicates para que el lector siga el pensamiento. La antigüedad clásica no tuvo nuestro respeto del libro, aunque sabemos que Alejandro de Macedonia tenía bajo su almohada la Ilíada y la espada, esas dos armas. Había gran respeto por Homero, pero no se lo consideraba un escritor sagrado en el sentido que hoy le damos a la palabra. No se pensaba que la Ilíada y la Odisea fueran textos sagrados, eran libros respetados, pero también podían ser atacados.
Platón pudo desterrar a los poetas de su República sin caer en la sospecha de herejía. De estos testimonios de los antiguos contra el libro podemos agregar uno muy curioso de Séneca. En una de sus admirables epístolas a Lucilio hay una dirigida contra un individuo muy vanidoso, de quien dice que tenía una biblioteca de cien volúmenes; y quién —se pregunta Séneca— puede tener tiempo para leer cien volúmenes. Ahora, en cambio, se aprecian las bibliotecas numerosas.
En la antigüedad hay algo que nos cuesta entender, que no se parece a nuestro culto del libro. Se ve siempre en el libro a un sucedáneo de la palabra oral, pero luego llega del Oriente un concepto nuevo, del todo extraño a la antigüedad clásica: el del libro sagrado. Vamos a tomar dos ejemplos, empezando por el más tardío: los musulmanes. Estos piensan que el Corán es anterior a la creación, anterior a la lengua árabe; es uno de los atributos de Dios, no una obra de Dios; es como su misericordia o su justicia. En el Corán se habla en forma asaz misteriosa de la madre del libro. La madre del libro es un ejemplar del Corán escrito en el cielo. Vendría a ser el arquetipo platónico del Corán, y ese mismo libro —lo dice el Corán—, ese libro está escrito en el cielo, que es atributo de Dios y anterior a la creación. Esto lo proclaman los sulems o doctores musulmanes.
Luego tenemos otros ejemplos más cercanos a nosotros: la Biblia o, más concretamente, la Torá o el Pentateuco. Se considera que esos libros fueron dictados por el Espíritu Santo. Esto es un hecho curioso: la atribución de libros de diversos autores y edades a un solo espíritu; pero en la Biblia misma se dice que el Espíritu sopla donde quiere. Los hebreos tuvieron la idea de juntar diversas obras literarias de diversas épocas y de formar con ellas un solo libro, cuyo título es Torá (Biblia en griego). Todos estos libros se atribuyen a un solo autor: el Espíritu.
A Bernard Shaw le preguntaron una vez si creía que el Espíritu Santo había escrito la Biblia. Y contestó: Todo libro que vale la pena de ser releído ha sido escrito por el Espíritu. Es decir, un libro tiene que ir más allá de la intención de su autor. La intención del autor es una pobre cosa humana, falible, pero en el libro tiene que haber más. El Quijote, por ejemplo, es más que una sátira de los libros de caballería. Es un texto absoluto en el cual no interviene, absolutamente para nada, el azar.
Pensemos en las consecuencias de esta idea. Por ejemplo, si yo digo:
Corrientes aguas, puras, cristalinas,
árboles que os estáis mirando en ellas
verde prado, de fresca sombra lleno
es evidente que los tres versos constan de once sílabas. Ha sido querido por el autor, es voluntario.
Pero, qué es eso comparado con una obra escrita por el Espíritu, qué es eso comparado con el concepto de la Divinidad que condesciende a la literatura y dicta un libro. En ese libro nada puede ser casual, todo tiene que estar justificado, tienen que estar justificadas las letras. Se entiende, por ejemplo, que el principio de la Biblia: Bereshit baraelohim comienza con una B porque eso corresponde a bendecir. Se trata de un libro en el que nada es casual, absolutamente nada. Eso nos lleva a la Cábala, nos lleva al estudio de las letras, a un libro sagrado dictado por la divinidad que viene a ser lo contrario de lo que los antiguos pensaban. Estos pensaban en la musa de modo bastante vago.
Canta, musa, la cólera de Aquiles, dice Homero al principio de la Ilíada. Ahí, la musa corresponde a la inspiración. En cambio, si se piensa en el Espíritu, se piensa en algo más concreto y más fuerte: Dios, que condesciende a la literatura. Dios, que escribe un libro; en ese libro nada es casual: ni el número de las letras ni la cantidad de sílabas de cada versículo, ni el hecho de que podamos hacer juegos de palabras con las letras, de que podamos tomar el valor numérico de las letras. Todo ha sido ya considerado.
El segundo gran concepto del libro —repito— es que pueda ser una obra divina. Quizá esté más cerca de lo que nosotros sentimos ahora que de la idea del libro que tenían los antiguos: es decir, un mero sucedáneo de la palabra oral. Luego decae la creencia en un libro sagrado y es reemplazada por otras creencias. Por aquella, por ejemplo, de que cada país está representado por un libro. Recordemos que los musulmanes denominan a los israelitas, la gente del libro; recordemos aquella frase de Heinrich Heine sobre aquella nación cuya patria era un libro: la Biblia, los judíos. Tenemos entonces un nuevo concepto, el de que cada país tiene que ser representado por un libro; en todo caso, por un autor que puede serlo de muchos libros.
Es curioso —no creo que esto haya sido observado hasta ahora— que los países hayan elegido individuos que no se parecen demasiado a ellos. Uno piensa, por ejemplo, que Inglaterra hubiera elegido al doctor Johnson como representante; pero no, Inglaterra ha elegido a Shakespeare, y Shakespeare es —digámoslo así— el menos inglés de los escritores ingleses. Lo típico de Inglaterra es el understatement, es el decir un poco menos de las cosas. En cambio, Shakespeare tendía a la hipérbole en la metáfora, y no nos sorprendería nada que Shakespeare hubiera sido italiano o judío, por ejemplo.
Otro caso es el de Alemania; un país admirable, tan fácilmente fanático, elige precisamente a un hombre tolerante, que no es fanático, y a quien no le importa demasiado el concepto de patria; elige a Goethe. Alemania está representada por Goethe.
En Francia no se ha elegido un autor, pero se tiende a Hugo. Desde luego, siento una gran admiración por Hugo, pero Hugo no es típicamente francés. Hugo es extranjero en Francia; Hugo, con esas grandes decoraciones, con esas vastas metáforas, no es típico de Francia.
Otro caso aún más curioso es el de España. España podría haber sido representada por Lope, por Calderón, por Quevedo. Pues no. España está representada por Miguel de Cervantes. Cervantes es un hombre contemporáneo de la Inquisición, pero es tolerante, es un hombre que no tiene ni las virtudes ni los vicios españoles.
Es como si cada país pensara que tiene que ser representado por alguien distinto, por alguien que puede ser, un poco, una suerte de remedio, una suerte de triaca, una suerte de contraveneno de sus defectos. Nosotros hubiéramos podido elegir el Facundo de Sarmiento, que es nuestro libro, pero no; nosotros, con nuestra historia militar, nuestra historia de espada, hemos elegido como libro la crónica de un desertor, hemos elegido el Martín Fierro, que si bien merece ser elegido como libro, ¿como pensar que nuestra historia está representada por un desertor de la conquista del desierto? Sin embargo, es así; como si cada país sintiera esa necesidad.
Sobre el libro han escrito de un modo tan brillante tantos escritores. Yo quiero referirme a unos pocos. Primero me referiré a Montaigne, que dedica uno de sus ensayos al libro. En ese ensayo hay una frase memorable: No hago nada sin alegría. Montaigne apunta a que el concepto de lectura obligatoria es un concepto falso. Dice que si él encuentra un pasaje difícil en un libro, lo deja; porque ve en la lectura una forma de felicidad.
Recuerdo que hace muchos años se realizó una encuesta sobre qué es la pintura. Le preguntaron a mi hermana Norah y contestó que la pintura es el arte de dar alegría con formas y colores. Yo diría que la literatura es también una forma de la alegría. Si leemos algo con dificultad, el autor ha fracasado. Por eso considero que un escritor como Joyce ha fracasado esencialmente, porque su obra requiere un esfuerzo.
Un libro no debe requerir un esfuerzo, la felicidad no debe requerir un esfuerzo. Pienso que Montaigne tiene razón. Luego enumera los autores que le gustan. Cita a Virgilio, dice preferir las Geórgicas a la Eneida; yo prefiero la Eneida, pero eso no tiene nada que ver. Montaigne habla de los libros con pasión, pero dice que aunque los libros son una felicidad, son, sin embargo, un placer lánguido.
Emerson lo contradice —es el otro gran trabajo sobre los libros que existe—. En esa conferencia, Emerson dice que una biblioteca es una especie de gabinete mágico. En ese gabinete están encantados los mejores espíritus de la humanidad, pero esperan nuestra palabra para salir de su mudez. Tenemos que abrir el libro, entonces ellos despiertan. Dice que podemos contar con la compañía de los mejores hombres que la humanidad ha producido, pero que no los buscamos y preferimos leer comentarios, críticas y no vamos a lo que ellos dicen.
Yo he sido profesor de literatura inglesa, durante veinte años, en la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Siempre les he dicho a mis estudiantes que tengan poca bibliografía, que no lean críticas, que lean directamente los libros; entenderán poco, quizá, pero siempre gozarán y estarán oyendo la voz de alguien. Yo diría que lo más importante de un autor es su entonación, lo más importante de un libro es la voz del autor, esa voz que llega a nosotros.
Yo he dedicado una parte de mi vida a las letras, y creo que una forma de felicidad es la lectura; otra forma de felicidad menor es la creación poética, o lo que llamamos creación, que es una mezcla de olvido y recuerdo de lo que hemos leído.
Emerson coincide con Montaigne en el hecho de que debemos leer únicamente lo que nos agrada, que un libro tiene que ser una forma de felicidad. Le debemos tanto a las letras. Yo he tratado más de releer que de leer, creo que releer es más importante que leer, salvo que para releer se necesita haber leído. Yo tengo ese culto del libro. Puedo decirlo de un modo que puede parecer patético y no quiero que sea patético; quiero que sea como una confidencia que les realizo a cada uno de ustedes; no a todos, pero sí a cada uno, porque todos es una abstracción y cada uno es verdadero.
Yo sigo jugando a no ser ciego, yo sigo comprando libros, yo sigo llenando mi casa de libros. Los otros días me regalaron una edición del año 1966 de la Enciclopedia de Brokhause (o correcto es Brockhaus Enzyklopädie ). Yo sentí la presencia de ese libro en mi casa, la sentí como una suerte de felicidad. Ahí estaban los veintitantos volúmenes con una letra gótica que no puedo leer, con los mapas y grabados que no puedo ver; y sin embargo, el libro estaba ahí. Yo sentía como una gravitación amistosa del libro. Pienso que el libro es una de las posibilidades de felicidad que tenemos los hombres.
Se habla de la desaparición del libro; yo creo que es imposible. Se dirá qué diferencia puede haber entre un libro y un periódico o un disco. La diferencia es que un periódico se lee para el olvido, un disco se oye asimismo para el olvido, es algo mecánico y por lo tanto frívolo. Un libro se lee para la memoria.
El concepto de un libro sagrado, del Corán o de la Biblia, o de los Vedas —donde también se expresa que los Vedas crean el mundo—, puede haber pasado, pero el libro tiene todavía cierta santidad que debemos tratar de no perder. Tomar un libro y abrirlo guarda la posibilidad del hecho estético. ¿Qué son las palabras acostadas en un libro? ¿Qué son esos símbolos muertos? Nada absolutamente. ¿Qué es un libro si no lo abrimos? Es simplemente un cubo de papel y cuero, con hojas; pero si lo leemos ocurre algo raro, creo que cambia cada vez.
Heráclito dijo (lo he repetido demasiadas veces) que nadie baja dos veces al mismo río. Nadie baja dos veces al mismo río porque las aguas cambian, pero lo más terrible es que nosotros somos no menos fluidos que el río. Cada vez que leemos un libro, el libro ha cambiado, la connotación de las palabras es otra. Además, los libros están cargados de pasado.
He hablado en contra de la crítica y voy a desdecirme (pero qué importa desdecirme). Hamlet no es exactamente el Hamlet que Shakespeare concibió a principios del sigio XVII, Hamlet es el Hamlet de Coleridge, de Goethe y de Bradley. Hamlet ha sido renacido. Lo mismo pasa con el Quijote. Igual sucede con Lugones y Martínez Estrada, el Martín Fierro no es el mismo. Los lectores han ido enriqueciendo el libro.
Si leemos un libro antiguo es como si leyéramos todo el tiempo que ha transcurrido desde el día en que fue escrito y nosotros. Por eso conviene mantener el culto del libro. El libro puede estar lleno de erratas, podemos no estar de acuerdo con las opiniones del autor, pero todavía conserva algo sagrado, algo divino, no con respeto superticioso, pero sí con el deseo de encontrar felicidad, de encontrar sabiduría.
Eso es lo que quería decirles hoy.
Jorge Luis Borges, Borges oral. Alianza Editorial.