Machado e as leis

Como funcionário público Machado de Assis é um observa a transformação do Império em República através da construção de um sistema legal. O desrespeito às leis é observado com cautelosa ironia. Algumas passagens e reflexões de Machado sobre comportamento social de alguns brasileiros em contraposição ao estatuto legal é observado nesses trechos de livro e crônicas.

  1. O império das Leis em Esaú e Jacó (1904).

" Custódio decide reformar o a velha tabuleta “Padaria do Império”. Com a mudança de regime, não poderia mais constar "do Império" o padeiro ficou na dúvida e com medo de desperdiçar o dinheiro, caso a república não sobrevivesse e tivesse alguma reviravolta. Machado com fina ironia mostra a ideia do personagem, o Conselheiro Aires.

Deixe-lhe estar a palavra império e acrescente-lhe embaixo, ao centro, estas duas, que não precisam ser graúdas: das leis. Olhe, assim - concluiu Aires, sentando-se à secretária (mesa), e escrevendo em uma tira de papel

Custódio leu, releu e achou que a ideia era útil; sim, não lhe parecia má. Só lhe viu um defeito, sendo as letras de baixo menores (das leis), podiam não ser lidas tão depressa e claramente como as de cima, e estas é que se meteriam pelos olhos ao que passasse
Comentário
Cético com a mudança de regime, Machado de Assis mostra que, tanto no Império como na República, o que se necessita não é de políticos e adversários, porém do Império da Lei. Na nova tabuleta, no novo governo, como no anterior, as leis seriam coisas menores, que podiam não serem observadas na pressa com que se mudava o sistema de governo.

2. As leis que não pegam.

Como cronista, com o pseudônimo de Eleazar, Machado mostra o espírito libertino de desobediência às leis.

O Cruzeiro 16/06/1878 - Notas semanais.

16 de junho de 1878

Notas semanais (O Cruzeiro, 1878) -

​ Machado de Assis sob o pseudônimo de Eleazar

"Venhamos à política prática, útil, progressiva; metamos na alcova os trechos de retórica, as frases feitas, todos os fardões da grande gala eleitoral. Não digo que os queimemos; demos-lhe somente algum descanso. Encaremos os problemas que nos cercam e pedem solução. Liberais e conservadores de Campinas, de Araruama, de Juiz de Fora, batei-vos nas eleições de agosto com ardor, com tenacidade; mas por alguns dias, ao menos, lembrai-vos que sois lavradores, isto é, colaboradores de uma natureza forte, imparcial e cética.

Os dias passam, e os meses, e os anos, e as situações políticas, e as gerações e os sentimentos, e as ideias. Cada olimpíada traz nas mãos uma nova andaina do tempo. [1] O tempo, que a tradição mitológica nos pinta com alvas barbas, é pelo contrário um eterno rapagão, rosado, gamenho, pueril; só parece velho àqueles que já o estão; em si mesmo traz a perpétua e versátil juventude. [2]

Duas coisas, entretanto, perduram no meio da instabilidade universal: -

1.º a constância da polícia, que todos os anos declara editalmente ser proibido queimar fogos, por ocasião das festas de São João e seus comensais; [3]

2º a disposição do povo em desobedecer às ordens da polícia. A proibição não é simples vontade do chefe; é uma postura municipal de 1856.
Anualmente aparece o mesmo edital, escrito com os mesmos termos; o chefe rubrica essa chapa inofensiva, que é impressa, lida e desrespeitada.[4]
Da tenacidade com que a polícia proíbe, e da teimosia com que o povo infringe a proibição, fica um resíduo comum: o trecho impresso e os fogos queimados.
Se eu tivesse a honra de falar do alto de uma tribuna [6], não perdia esta ocasião de expor longa e prudhommescamente o princípio da soberania da nação, cujos delegados são os poderes públicos; diria que, se a nação transmitiu o direito de legislar, de judiciar, de administrar, não é muito que reservasse para si o de atacar uma carta de bichas [7]; diria que, sendo a nação a fonte constitucional da vida política, excede o limite máximo do atrevimento empecer-lhe o uso mais inofensivo do mundo, o uso do busca-pé.
Levantando a discussão à altura da grande retórica, diria que o pior busca-pé não é o que verdadeiramente busca o pé, mas o que busca a liberdade, a propriedade, o sossego, todos esses pés morais (se assim me pudesse exprimir), que nem sempre soem caminhar tranquilos na estrada social; diria, enfim, que as girândolas criminosas não são as que ardem em honra de um santo, mas as que se queimam para glorificação dos grandes crimes. [8]
Que tal? Infelizmente não disponho de tribuna, sou apenas um pobre-diabo, condenado ao lado prático das coisas; de mais a mais míope, cabeçudo e prosaico. Daí vem que, enquanto um homem de outro porte vê no busca-pé uma simples beleza constitucional, eu vejo nele um argumento mais em favor da minha tese, a saber, que o leitor nasceu com a bossa da ilegalidade.

Note que não me refiro aos sobrinhos do leitor, nem a seus compadres, nem a seus amigos; mas tão-somente ao próprio leitor. Todos os demais cidadãos ficam isentos da mácula se a há. Que um urbano, excedendo o limite legal das suas atribuições, se lembre de pôr em contato a sua espada com as costas do leitor, é fora de dúvida que o dito leitor bradará contra esse abuso do poder; fará gemer os prelos; mostrará a lei maltratada na sua pessoa. Não menos certo é que, assinado o protesto, irá com a mesma mão acender uma pistola de lágrimas; e se outro urbano vier mostrar-lhe polidamente o edital do chefe, o referido leitor aconselhar-lhe-á que o vá ler à família, que o empregue em cartuchos, que lhe não estafe a paciência. Tal é a nossa concepção da legalidade [11]; um guarda-chuva escasso, que, não dando para cobrir a todas as pessoas, apenas pode cobrir as nossas; noutros termos, um pau de dois bicos.
Agora, o que o leitor não compreende é que esse urbano excessivo no uso das suas atribuições, esse subalterno que transgride as barreiras da lei, é simplesmente um produto do próprio leitor; não compreende que o agregado nada mais representa do que as somas das unidades, com suas tendências, virtudes e lacunas.[13]
O leitor (perdoe a sua ausência) é um estimável cavalheiro, patriota, resoluto, manso, mas persuadido de que as coisas públicas andam mal, ao passo que as coisas particulares andam bem; sem advertir que, a ser exata a primeira parte, a segunda forçosamente não o é; e, a sê-lo a segunda, não o é a primeira. Um pouco mais de atenção daria ao leitor um pouco mais de equidade. Mas é tempo de deixar as cartas de bichas.

[1] Na crônica semanal o autor observa o tempo que avança rápido. As olimpíadas da tradição grega (cada olimpíada) acontecia a cada quatro anos. A olimpíada moderna inicia-se em 1896, anos depois da crônica. A Olimpíada representava uma marcação de eventos no tempo que anda ( andaima do tempo)​.

[2].Na pintura o tempo é representado pelo “velho” deus Saturno, o deus grego Chronos ( daí o cronômetro ). No quadro o tempo corta as asas do jovem deus Cupido, o Deus do amor, representando o tempo que mata as esperanças do jovem amor.

ver no original - Akimov 1802.

[3] Nessa reversão o autor mostra o absurdo de que embora tudo se modifica no tempo os velhos vícios e maus hábitos permanecem, tais como elaborar leis que serão desobedecidas, leis que “não pegam”.

[4] A “chapa inofensiva” é a página montada para ser impressa, usava-se os mesmos elementos tipográficos com uma alteração da data e a assinatura do chefe da polícia, pois a mesma lei era reimpressa há vinte e oito anos.

[5] A proibição policial só servia para estimular o desrespeito à lei. Tanto a lei como os fogos tinham o destino comum: viravam pó, cinzas que nada serviam.​

[6] Machado de Assis, aos vinte anos,foi jornalista na Câmara Municipal, escutava os longos discursos proferidos da tribuna. A referência a Prudhon (1809-1865) é uma ironia. O político socialista proclamava a Anarquia contra o Estado, bem ao contrário de que cabe ao poder público definir que a soberania da nação, as leis, são definidas pelo poder público. Como o autor não é um deputado “se eu tivesse a honra da tribuna”, a contradição entre a afirmação do anarquismo e a soberania das leis é uma sutil crítica irônica, ao anarquismo de Prudhon e os que a lei promove ao serem editadas.

[7] “carta de bichas” é uma seção do jornal, como A semana onde esta crônica se abriga, no qual o articulista tece comentários, em geral irônicos, sobre as decisões políticas.​

[8] Machado sutilmente aponta que os grandes crimes não abordados, a corrupção e perde-se tempo em proibir fogos de comemoração aos santos. ​

[9] “Se assim pudesse me exprimir” o cronista está na posição do público incapaz de se exprimir politicamente, não poder falar do “alto da tribuna”. Observa que o Estado através da organização política ( deputados, chefe da polícia) não se preocupam com as coisas importantes como a liberdade e a propriedade que em geral (soem) não acompanham o desenvolvimento social.

[11] Machado de Assis coloca-se na posição do povo em oposição ao legalismo oficial, é um pobre diabo sem voz “sem o poder da tribuna” com o senso prático que está à margem da lei absurda da proibição de uma brincadeira popular. As leis são tão absurdas que o autor, em cumplicidade com o leitor, parece ter inclinação ( a bossa) para ilegalidade. “nossa concepção de legalidade”, as leis no Brasil, são relativas, servem na proteção de alguns, a família do policial e os políticos, porém não a todos.

[12] De um modo particular o cronista evita uma posição política no qual um grupo está em desacordo com a lei, limita-se à conversa autor-leitor.​

[13] Machado escreve a crônica como um colóquio com o leitor, cria um leitor virtual com o qual o autor dialóga.
[14] Reflete a ambiguidade entre o indivíduo e grupo social. A moral e ética do indivíduo é diferente da pública.

[15] Uma aguda observação do individualismo em nossa sociedade. Não é possível que os negócios particulares caminhem bem quando o coletivo, as ações públicas e políticas andam mal. Por outro lado só se poder ir bem individualmente quando as situação política permite. Ao final chama a atenção do público leitor, que sem sua participação e o fim do individualismo a situação de desenvolvimento social fica prejudicada por um estado burocrático alheio às necessidades populares.


Uma discussão e conexão com o atual contexto - a atualidade de Machado de Assis

​Multa para será de R$ 2 mil e terá o valor dobrado em caso de reincidência em menos de 30 dias.


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