Jorge Luiz Borges - O Livro

Aula proferida na Universidade de Belgrano 1978

​Traduzido de "Obras Completas IV" - Borges Oral - EMECE


Dentre os instrumentos inventados pelo homem, o mais impressionante é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da visão; o telefone uma extensão da voz e finalmente temos o arado e a espada, ambos extensões do braço. O livro, porém, é outra coisa. ​O livro é uma extensão da memória e da imaginação. [1] 

Em César e Cleópatra de Shaw, ​quando se fala sobre a biblioteca de Alexandria [2], os livros são descritos como a memória da humanidade.

O livro é isto e muito mais, é também a imaginação. O que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Afinal que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado ?  [4] A função do livro é recordar [5]. Pensei, certa vez, em escrever uma história do livro, não do ponto de vista físico. Os livros não me interessam fisicamente - sobretudo as coleções dos bibliófilos, em geral imensas -, mas sim como eles podem ser avaliados ao longo do tempo. [6]

Splenger me antecipou, em seu livro "Decadência do Ocidente" onde têm páginas preciosas sobre o livro. Com alguma pitada pessoal penso ater-me aqui ao que disse Spengler.

​Os antigos não professavam nosso culto ao livro - coisa que me surpreende. Para eles o livro é um sucedâneo da palavra oral. A frase latina "Verba volant, scripta manet" não quer dizer que a palavra oral seja volátil, mas sim que a palavra escrita permanecerá e está morta [7]. Por sua vez a palavra oral tem algo de sutil, volátil, sublime e sagrado, como disse Platão[8]. Todos os mestres da humanidade foram, curiosamente, mestres orais [9]. Vejamos o primeiro caso: Pitágoras. Sabemos que, deliberadamente, Pitágoras nada escreveu. Pitágoras não escreveu porque não quis [10]. Não escreveu porque não desejava limitar-se à palavra escrita. Sentiu sem dúvida que a letra mata mas o espírito vivifica; o que, mais tarde, será citado na Bíblia. Ele deve ter sentido isto, e não quiz limitar-se à palavra escrita, por isto Aristóteles nunca fala de Pitágoras, mas sim dos Pitagóricos[11]. Nos disse por exemplo que os pitagóricos professavam a crença, o dogma, do eterno retorno [12], que mais tarde foi redescoberto por Nietzsche [13]. Ou seja, a idéia do tempo cíclico, que foi refutada por Santo Agostinho em Cidade de Deus. Santo Agostinho nos diz, através de uma linda metáfora, que a cruz de Cristo nos salva do labirinto circular dos estóicos [14]. A idéia de um tempo cíclico também foi revista por Hume, Blanqui e tantos outros [15].

Pitágoras não escreveu porque não quis. Queria que seu pensamento permanecesse vivo além de sua morte física, na mente de seus discípulos. Daqui veio aquele ditado (eu não sei grego, tratarei de dizê-lo em Latim) "Magister dixit" (o mestre assim disse ). Isto não significa que estivessem limitados ao que o mestre havia dito, ao contrário, afirmavam a liberdade de continuarem refletindo o pensamento original do mestre. 

Não sabemos se Pitágoras foi o iniciador da doutrina do tempo cíclico, porém sabemos que seus discípulos a professavam. Pitágoras morre físicamente e eles, por um tipo de transmigração - e isto teria agradado a Pitágoras - seguem pensando e repensando seu pensamento, [16] e quando se reprovam ao dizer algo novo, se refugiam naquela fórmula: "assim disse o Mestre - Magister Dixit."

Porém temos outros exemplos. Platão, em um exemplo ilustre, disse que os livros são como esfinges (pode ter pensado em esculturas ou em quadros), que nós cremos que estão vivas, porém se lhes perguntamos sobre alguma coisa elas nada respondem. Então para corrigir esta mudez dos livros, ele inventa o diálogo platônico. Digamos que Platão multiplica-se em vários personagens: Sócrates, Gorgias e os demais [19]. Também podemos pensar que Platão queria consolar-se da morte de Sócrates imaginando que este seguiria vivendo em seus Diálogos. Frente a qualquer questão Platão perguntava-se: "O que Sócrates pensaria a respeito disto?". Deste modo Platão imortalizou Sócrates, que também não deixou nada escrito e foi um mestre oral. [20].

Sabemos que Cristo escreveu uma única vez algumas palavras na areia que o vento acabou apagando [21]. Ao que se saiba não escreveu mais nada. Buda também foi um mestre oral e só ficaram suas prédicas [22]. Temos uma frase de Santo Anselmo "um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso quanto uma espada nas mãos de uma criança" [23] . Isto é o que se pensava dos livros.

No Oriente existe ainda um conceito de que um livro não deve revelar as coisas, um livro deve, simplesmente, ajudar-nos a descobri-las. Apesar de minha ignorância do Hebráico, estudei algo da Cabala. Li as versões inglesas e alemãs do Zohar (O Livro do Esplendor), El Sefer Yezira (O Livro das Relações). Sei que estes livros não estão escritos para serem entendidos, porém para serem interpretados , são desafios para que o leitor continue a pensar [24].

A antiguidade clássica não teve este nosso respeito pelo livro, embora saibamos que Alexandre da Macedônia tinha, em baixo do travesseiro, a Ilíada e a espada, estas duas armas [25]. Havia grande respeito por Homero, porém não era considerado um escritor sagrado no sentido que temos hoje pela palavra. Não se pensava na Ilíada e naOdisseia como textos sagrados, eram livros respeitados, porém podiam ser criticados [26]. Platão pode expulsar os poetas de sua República sem cair em suspeita de heresia [27].

Do testemunho dos antigos contra os livros podemos apontar um muito curioso de Sêneca. Em

suas admiráveis cartas a Lucílio, tem uma dirigida contra um indivíduo muito vaidoso, de quem se diz que tem uma biblioteca de cem volumes; e quem - pergunta Sêneca - pode ter tempo para ler cem volumes [28]? Por outro lado hoje se apreciam bibliotecas grandes. Na antiguidade tem uma coisa de difícil compreensão, que não se parece com nosso culto ao livro. O livro sempre é visto como uma extensão da palavra oral [29], porém surge no Oriente um conceito novo, de todo estranho à antiguidade clássica: a do livro sagrado . Vamos tomar dois exemplos, começando pelo mais recente: os muçulmanos. Eles pensam que o Alcorão [Do ár. al-qurAYn, 'o que deve ser recitado] é anterior à criação, anterior à língua árabe; é um dos atributos de Deus, não é uma obra de Deus, é como se fosse sua misericórdia ou sua justiça. No Alcorão se fala de uma forma muito estranha do livro original. Este livro é um exemplar do Alcorão escrito no céu [30]. Talvez venha a ser o arquétipo ideal de Platão do Alcorão, e este mesmo livro, nos diz o Alcorão, que está escrito no céu, que é o atributo de Deus e anterior à criação [31]. Assim nos dizem os suleimans, os doutores muçulmanos [32].

​Temos outros exemplos mais próximos de nós: A Bíblia, ou mais precisamente o Tora ou o Pentateuco [33]. Acredita-se que estes livros foram ditados pelo Espírito Santo [34].  Isto é um fato interessante: atribuir a livros de diversos autores e épocas diferentes a um único espírito [35], porém a própria Bíblia diz que o Espírito sopra de onde quer [36]. Os hebreus tiveram a ideia de juntar obras literárias de diversas épocas e formar com elas um único livro, cujo título é Tora, ou Bíblia em Grego [37]. A todos estes livros atribuem a um único autor: O Espírito.

A Bernard Shaw perguntaram uma vez se acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: Todo livro que vale a pena ser lido foi escrito pelo Espírito [38]. Eu acrescento: Todo livro que vale a pena ser relido foi escrito pelo Espírito. Vale dizer, um livro tem que ir além da intenção de seu autor. A intenção do autor é uma pobre coisa humana, falível, porém o livro tem que ir além [39]. Don Quijote por exemplo, é mais do que uma sátira aos livros de cavalaria. É um texto absoluto em que nada é improvisado [40]. Pensemos nas consequências desta ideia. Por exemplo se digo:

Correntes águas, puras, cristalinas,

árvores que estais refletindo nelas

​verde prado, cheio de frescas sombras. [41].

é evidente que os três versos contém onze sílabas. Assim quiz o autor, é voluntário. 

Porém o que é isto comparado com uma obra escrita pelo Espírito, o que é isto comparado com o conceito de Divindade, que se curva frente à literatura e dita um livro [42]. Neste livro nada poderia ser ao acaso, tudo teria que estar justificado, letra a letra. Entende-se, por exemplo que o início da Bíblia: Bereshit bara Elohim, [43] começa com a letra B, porque isto corresponde a bendizer [44]. Trata-se de um livro em que nada é ao acaso, absolutamente nada. Isto nos leva à Cabala, nos leva ao estudo das letras de um livro sagrado ditado por uma divindade, que vem a ser o contrário do que pensavam os antigos [45]. Estes pensavam na musa de um modo bastante vago. "Canta, musa, a cólera de Aquiles" diz Homero no princípio da Ilíada. A musa tem, aqui, o seu correspondente à inspiração [46]. Por outro lado pensar no Espírito é pensar em coisa mais concreta, mais forte: Deus, que nos condescende a literatura [47]. É Deus que escreve um livro; e neste livro nada é ao acaso, nem o número de letras nem a quantidade de sílabas de cada versículo, nem o fato de que possamos fazer jogos de palavras com as letras, de que possamos considerar o valor numérico das letras [48]. Tudo foi previsto. O segundo grande conceito dos livros - repito - é que ele pode ser uma obra divina [49]. Talvez isto esteja mais próximo daquilo que sentimos agora sentimos do que da ideia que os antigos tinham dos livros, quer dizer, o livro é um mero sucedâneo da palavra oral [50]. Logo que cai a crença do livro sagrado ela é substituída por outras crenças. Por exemplo a de que cada país está representado por um livro. Recordemos que os mulçumanos dominam aos judeus, o povo do livro; recordemos a frase de Heinrich Heine sobre uma nação cuja pátria era um livro: a Biblia dos judeus. [51]

Temos então um novo conceito, o de que cada país tem pode ser representado por um livro, ou ao menos por um autor, que pode ser autor de muitos livros. É curioso, não creio que isto tenha sido observado antes, que os países elejam para seus representantes autores que não se parecem com eles. Alguém poderia pensar, por exemplo, que a Inglaterra poderia escolher Doutor Johnson como seu representante. Porém não! A Inglaterra escolheu Shakespeare, e Shakespeare é, digamos assim, o menos inglês dos escritores ingleses. O típico da Inglaterra é o Understatement, que significa dizer um pouco menos sobre as coisas. Ao contrário, Shakespeare tendia à hipérbole na metáfora e não nos surpreenderia que Shakespeare tivesse sido, por exemplo, italiano ou judeu. Outro caso é o da Alemanha. Um país admirável, tão facilmente fanático, que elege precisamente um homem tolerante, que não é fanático, e a quem o conceito de pátria não é demasiadamente importante, elege Goethe. A Alemanha é representada por Goethe.

Na França não se elege um autor, porém temos Victor Hugo. Desde logo, sinto uma grande admiraçãopor Hugo, porém Hugo não é típicamente francês. Hugo é estrangeiro na França, com este estilo decorativo, com estas vastas metáforas, não é típico da França. 

Outro caso ainda mais curioso é o da Espanha. A Espanha poderia ter sido representada por Lope, Calderón, por Quevedo, porém a Espanha é representada por Miguel de Cervantes.

 Cervantes é um homem contemporâneo da Inquisição, porém é tolerante, é um homem que não tem nem as virtudes nem os vícios espanhóis. É como se cada país pensasse ser representado por alguém diferente dele mesmo, por alguém que possa ser, um pouco, uma espécie de remédio, uma espécie de "triaca" , um antídoto contra seus defeitos. Nós, os argentinos, poderíamos ter escolhido Facundo de Sarmiento, que é nosso livro, porém não; nós com nossa história militar, nossa história de espada, elegemos como livro a crônica de um desertor, elegemos el Martín Fierro, que bem merece ser eleito como livro. Como pensar que nossa história está representada por um desertor da conquista do deserto? Porém, assim é, como se cada país sentisse esta necessidade. Vários escritores escreveram de modo brilhante sobre os livros. Quero referir-me a uns poucos. Primeiro me concentrarei em Montaigne, que dedica um de seus ensaios ao livro. Neste ensaio tem uma frase memorável: Não faço nada sem alegria. Montaigne mostra que o conceito de leitura obrigatória é um conceito falso. Diz que ao encontrar uma passagem difícil em um livro, deixa-o: porque vê na leitura uma forma de felicidade. Recordo-me que há muitos anos realizou-se uma pesquisa sobre o que é a pintura. Perguntaram à minha irmã Norah e ela respondeu que a pintura é a arte de mostrar com alegria as formas e as cores. Eu diria que a literatura também é uma forma de alegria. Se lemos alguma coisa com dificuldade, o autor fracassou. Por isto considero que um escritor como Joyce essencialmente fracassou, porque sua obra requer esforço para ser lida. Uma leitura, um livro, não deve demandar esforços pois a felicidade não demanda sacrifícios. Penso que Montaigne está certo. Montaigne enumera os livros de que gosta. Citando Virgílio, ele diz preferir as Geórgicas à Eneida porém isto não é importante. Montaigne fala dos livros com paixão, diz que, embora os livros sejam uma forma de felicidade, são contudo um lânguido prazer. Emerson o contradiz. Eis um outro grande trabalho sobre o livro. Nesta conferência Emerson diz que uma biblioteca é uma espécie de salão mágico. Neste salão estão presos os melhores espíritos da humanidade, porém esperam nossa palavra para sair de sua mudez. Temos que abrir os livros e então eles despertam. Diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais.

Emerson diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais. Fui professor de literatura inglesa durante vinte anos, na Faculdad de Filosofia y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Sempre digo aos meus alunos que tenham pouca bibliografia, que não leiam as críticas, que leiam diretamente os livros. Talvez entendam pouco, porém sempre terão o gozo de ouvir a voz de alguém. Eu diria que o mais importante de um autor é sua entonação, o mais importante de um livro é a voz do autor, esta voz que chega até nós. Dediquei parte de minha vida às letras, e creio que a leitura é uma forma de felicidade. Outra forma de felicidade menor é a criação poética, ou aquilo a que chamamos de criação, que é uma mistura de esquecimento e lembrança do que lemos. Emerson concorda com Montaigne sobre o fato de que devemos ler somente aquilo que nos agrada e que um livro tem que ser uma forma de felicidade. Devemos tanto às letras. Eu procuro mais reler do que ler. Creio que reler é mais importante, embora para se reler seja necessário ter lido uma primeira vez. Eu tenho este culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo tolo e não quero ser tolo, quero que seja uma confidência que faça a cada um de vocês, não a todos, porém a cada um, pois todos é uma abstração e cada um é concreto. Continuo achando que não sou cego pois prossigo comprando livros e enchendo minha casa deles. Outro dia presentearam-me com uma edição de 1966 da Enzyklopadie Brockhaus e eu senti a presença deste livro em minha casa, senti-a como uma forma de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e, apesar disto, o livro estava ali. Eu o sentia como uma atração amistosa. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que nós, humanos, temos. Dizem que o livro desaparecerá, eu creio que é impossível. Perguntam: que diferença pode haver entre um livro e uma revista ou um disco? A diferença é que uma revista é para ser lida e esquecida, um disco se ouve, e mesmo assim, para o esquecimento, é uma coisa mecânica e portanto frívola. Um livro se lê para a memória. O conceito de livro sagrado, do Alcorão, da Bíblia e dos Vedas - onde também se diz que os Vedas criaram o mundo - pode estar ultrapassado, porém o livro tem uma espécie de santidade que devemos cuidar para que não se perca. Pegar um livro e abri-lo guarda a possibilidade do fato estético. Quais são as palavras inseridas no livro? O que são estes símbolos mortos? É simplesmente um cubo de papel e couro, com folhas. Porém se o lermos ocorre uma coisa rara, creio que ele muda a cada momento. Heráclito disse (e tenho repetido isto em demasia) que nada se banha duas vezes no mesmo rio. Nada se baixa duas vezes no mesmo rio porque as águas mudam porém, o mais terrível, é que nós mesmos não somos menos fluídos que um rio.

Cada vez que lemos um livro, o livro se modifica, a conotação das palavras é outra. Além disto, os livros estão carregados de passado. Tenho falado contra a crítica e vou aqui ser contraditório (porém o que me importa ser contraditório). 

​Hamlet não é exatamente Hamlet que Shakespeare concebeu no início do século 17. Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de Bradley. O mesmo se passa com o Quijote. Igual se sucede com Lugones e Martínez Estrada, o Martin Fierro já não é o mesmo. Os leitores acabam enriquecendo o livro. Se lemos um livro antigo, é como se o tivéssemos lido durante todo o tempo transcorrido entre o dia que foi escrito e o nosso tempo. Por isto convém manter o culto ao livro. O livro pode estar cheio de erratas, podemos não concordar com as opiniões do autor, porém ele conserva algo de sagrado, de divino, não de modo supersticioso, mas com o desejo de encontrar a felicidade, de encontrar a sabedoria. Isto é o que queria dizer-lhes hoje.

Buenos Aires, 24/05/1978









Comentários : Antonio Brito @abrito1953

[1] A visão é indispensável ao leitor. Borges não enxergava há vinte anos. Instrumentos sondam o infinito, o telescópio, ou penetram no infinitamente pequeno, o microscópio, definem os limites da imaginação e do conhecimento. O telefone tem como meio a palavra oral e o livro é o registro da palavra escrita. O arado e a espada têm funções opostas: um cria a vida outro a ceifa. Uma das esperanças do Profeta Isaías 2:4 E a espada se converterá em lâmina do arado.

[2] A biblioteca mais famosa da antiguidade, parte de um Museu de estudos em Alexandria, Egito. Continha literatura grega e traduções. Sobreviveu por 500 anos e foi destruída em uma guerra civil no império de Aureliano no século 3 D.C. Alexandria foi o centro da cultura helênica e dos debates na Igreja Cristã primitiva. No Poema de los dones Borges refere-se à queima dos manuscritos de Alexandria. 

[3] As duas funções do livro: estimular a imaginação e registrar o conhecimento, a memória.  Enquanto a imaginação se alimenta dos sonhos, naquilo que não têm existência real,  a memória é o conhecimento da vida.  A memória é a matéria da literatura. O autor registra sua imaginação e memória para a posteridade através da escrita. 

[4] Através da recordação o sentido de tempo se perde. O sonho pode estar associado em advinhar o futuro. Recordar sonhos seria visitar um espaço futuro. Porém a função de recordar une  passado e  futuro. No Poema de los dones, Borges refere-se a sonhos e esquecimentos.

 [5] Borges utiliza-se de antíteses:
sonhar e recordar,

 memória e imaginação, 

 futuro e passado,

palavra oral e escrita,

com a síntese:a função do livro é recordar


[6] O livro físico tal como concebemos é uma invenção que surge com a prensa de Gutemberg em 1439. O livro como um repositório de informação não interessa à Borges. O que importa é o texto, que tanto pode ser impresso em um pedra, uma folha de papel ou em um dispositivo digital como este. 

[7] "a palavra oral se dispersa ao vento enquanto o escrito é permanente". Por "antigos" podemos atribuir à cultura Grega antes de Platão. Antes de ser consolidado em uma forma escrita, não necessariamente um livro, porém em folhas avulsas, os poemas de Homero eram recitados com o acompanhamento da lira, um instrumento musical, daí a lírica. Porém ao dizer que a palavra escrita está morta indica que ela não tem voz, está muda, logo sem vida. Borges lamente a falta do culto à palavra impressa, o livro, porém logo a seguir cria uma ambiguidade colocando em relevo a palavra oral.

​[8] Em Fedro, Platão expõe a desconfiança de Sócrates sobre a palavra escrita. Em A República ele não recomenda a poesia como método de ensino, como se fazia até então com os poemas orais de Homero. Para Platão, decorar poemas inibe o raciocínio do aluno

[9] Os mestres da antiguidade: Jesus Cristo, Buda e Sócrates nada escreveram. Como professores não acreditavam na escrita como ferramenta de ensino. Veja um artigo a respeito. : Ensino oral e escrito. 

​[10] Pitágoras viveu entre 570 a 495 antes de Cristo. Porém escritos sobre Pitágoras surgiram somente duzentos anos depois. A escola de Pitágoras era uma seita que praticava o ocultismo, que influenciou a maçonaria e a seita rosacruz, cujo conhecimento só era transmitido aos iniciados. Os segredos dos pitagóricos, não poderiam, evidentemente, serem publicados e nem Pitágoras assim desejaria.  A filosofia pitagórica influenciou Platão e Aristóteles e até hoje estuda-se o "teorema de Pitágoras". 

[11] Em Metafísica [1-5] Aristóteles afirma "os pitagóricos imaginam que a matemática é o princípio de todas as coisas". O ensaio de Aristóteles sobre os pitatógricos desapareceu, alguma parte dele está no ensaio Protepticus.

 [12] O eterno retorno dos pitagóricos refere-se à reencarnação. Acreditavam na transmigração das almas, ou seja que elas poderiam depois de mortas reencarnar tanto entre os animais como entre os homens. 

[13] O eterno retorno dos estóicos, retomado por Nietzsche (1834-1900), refere-se à repetição, no tempo, das ações. O tempo não seria uma sequência linear porém cíclica. 

[14] Não consigo encontrar esta referência. Caso saiba, por favor contacte-me.

[15] Hume (1711-1776.) Embora o inglês David Hume tenha influenciado a filosofia e as ciências experimentais não consta nenhum ensaio , Blanqui (1805-1881) O político e filósofo francês baseava na cosmologia de Newton no qual os mundos eram infinitos e o tempo eterno. Sob este argumento não seria impossível que em outros mundos estivessem sendo repetidos os mesmos fenômenos que estão acontecendo simultâneamente. 

​[16] Os pitágoricos finalizavam seus teoremas com a frase  em grego "autos ephe  αυτός εφέ" (Assim disse o Mestre, ou em Latim Magister Dixit"), com ênfase no caráter oral do ensinamento.

​[17] A doutrina do tempo cíclico veio da Ásia com os hindus e foi adotada pelos pitagóricos. 

[18] A questão do escrita como uma "letra morta", no qual o leitor pode fazer perguntas porém o autor não pode respondê-las, nem defender-se de seus críticos está analisada em detalhe em ensino oral e escrita. ​

[19] Platão, diferente de Aristóteles, não escreve ensaios. Utiliza-se dos diálogos, como no teatro, onde os personagens possuem pontos de vista diferentes, até opostos, a dialética, e acabam por chegar a uma conclusão, síntese. 

[20] No diálogo Fédon , Platão descreve a morte de Sócrates e faz uma reflexão sobre a imortalidade da alma. Ao registrar através da escrita Platão consolida os ensinamentos de Sócrates. Através da escrita morre o autor, sobrevive o personagem. Sócrates tornou-se imortal como um personagem de Platão. 

​[21] João 8:6 "Mas Jesus, inclinando-se escrevia na areia com o dedo". 

[22] Buda viveu entre os séculos 5 e 6 antes de Cristo. Também conhecido por Gautama e Sidarta. Seus discursos foram consolidados, embora não exista um único cânone, no conjunto Tipitaka que compõe 3 áreas por assunto pitaka (disciplina, discursos, ensinamento superior).


​[23] No ensaio "o culto aos livros" incluso em Outras Inquisições (1951), Borges indica que o  livro é tão perigoso como uma espada nas mãos de uma criança,  deve-se a Clemente de Alexandria (150-215). Em seu  Stromata quando se refere à utilidade do texto escrito diz que o autor necessita ter cuidado na escrita  pois o texto pode ter nas mãos de um leitor desavisado o mesmo efeito quando uma criança encontra uma espada. Não consta que Santo Anselmo tenha dito algo a respeito.


​[24] Desde 1931 Borges iniciou um diálogo com a interpretação da Cabala. Saiba mais em  Borges e a Cabala. 


[25] Na palestra sobre La Kábala Borges atribui esta citação à Plutarco sobre Alexandre. Para Alexandre a Ilíada é um guia sobre a arte da guerra. O conquistador, discípulo de Aristóteles, mantinha sobre o travesseiro sua adaga e a Ilíada ("always kept it lying with this dagger under his pillow"). 


[26] As duas fontes da literatura são os clássicos gregos, como a Ilíada e a Odisseia e os textos sagrados como a Bíblia. 


​[27]Platão condena os poemas de Homero porém não comete heresia, afinal a Odisséia não é um livro sagrado.  No livro X da República Platão "Homero é o maior poeta e o primeiro a escrever as tragédias, porém permaneço firme em minha convicção que os hinos aos Deuses e os ensaios de elogio aos grandes homens é a única poesia que deveria ser admitida em nossa República. Pois se irmos além disto a canto doce das musas entrarão, quer nos versos épicos como nos líricos, e impedirá a difusão das leis e da razão entre os homens". Saiba mais. 


[28] Borges confunde a advertência de Seneca com o episódio do bibliófilo Pietro Pomponazzi (1462-1525). Deixou como herança o que era considerado uma grande biblioteca, tinha menos de cem volumes. Em Carta a Lucílio Sêneca adverte-o da leitura superficial "A abundância de livros é fonte de dispersão; assim, como não poderás ler tudo quanto possuis, contenta-te em possuir apenas o que possas ler. Dirás tu: "Mas sinto vontade de folhear ora este livro, ora aquele ... Lê, portanto, constantemente autores de confiança e quando sentires vontade de passar a outros, regressa aos primeiros" Livro I carta II Cartas a Lucílio. 


​[29] Somente a partir de 1800 o livro e o jornal passaram a estar o alcance de todos, antes da imprensa somente os monges e poucos professores tinham acesso ao texto. Antes de  consolidado no texto os poemas de Homero eram transmitidos oralmente, como os cantadores, rapsodos,  nas feiras populares. 


​[30] O Alcorão foi escrito, na língua árabe da  entre 610 e 632 pelo profeta Maomé a partir de uma revelação feita pelo anjo Gabriel.. No próprio Alcorão ele se define como um  livro único e perfeito que está guardado, as cópias físicas são uma representação deste texto oculto. O texto se define como definitivo, onde nada foi omitido, é para ser usado de forma oral como um recital não para ser interpretado.  Uma crítica do ponto de vista literário ao Alcorão foi feita por Edward Gibbon (1737-1794) ao verificar as inconsistências e redundâncias do texto "Se a composição do Koran é superior às faculdades humanas, então que inteligência superior poderia ter escrito a Ilíada de Homero?" (Declínio e Queda do Império Romano, Capítulo 50). 


[31] Borges retoma Platão sobre outro tema, o mundo ideal, onde estão as idéias imutáveis que não podem ser modificadas pela ação humana, como o Alcorão, do qual deriva todas as formas e representações terrestres. Os muçulmanos podem ter adotado o conceito de Platão das idéias perfeitas. 


[32] "assim nos dizem os doutores" , Borges retorna ao "Assim disse o Mestre" dos pitagóricos. Pode ser lido com uma ponta de ironia.


[33] O Pentateuco compreende os cinco livros da bíblia judaíca (Gênesis - Bereshit - No começo, Exodus - Shemot - Nomes, Leviticus - Vayikra - Chamado, Números - Bamidbar - No deserto, Deuterônimo - Dvarim - Palavras). `Como os mulçumanos os judeus acreditam que o Tora (ensinamento) foi escrito antes da criação. Diferente deles os judeus interpretam e discutem a compreensão do texto. 


​[34] Os profestas, como Moisés, são  aqueles que revelaram a vontade divina, são escrivães do Espírito Santo.


[35] Umberto Eco em um ensaio ironiza o fato de que seria difícil pagar os direitos autorais dos autores da Biblia. 

[36] "O vento sopra aonde quer. Você escuta sua voz, mas não pode dizer de onde veio nem para onde vai. Assim é todo aquele nascido no Espírito." João 3:8.


​[37] Tora em Hebreu significa instrução, ensinamento. Para o cristianismo ele é o Pentateuco. Bíblia do grego (os livros) para os cristão reúne os textos sagrados que os cristãos acreditam ser um produto da inspiração divina e que regulam as relações entre os Homens e Deus.


​[38] Borges reproduz uma ironia de Bernard Shaw (de cujo origem não consigo identificar), dizendo de outro modo "nem tudo o que foi escrito vale a pena ser lido". Na Cabala acredita-se que quando escrevemos é Deus quem escreve. 


​[39] Borges chama a atenção para o papel do leitor, da recepção do texto. A intenção do autor é o início da escrita, porém o livro só se concretiza depois de várias leituras e releituras, O texto está além da intenção do autor, a obra só se consolida com a ação dos leitores. 

Veja Umberto Eco A construção do leitor. 


[40] Don Quixote é uma releitura dos livros de cavalaria com ironia e crítica. Nada é improvisado, é como se fosse uma poesia, onde cada sílaba está presa à métrica e ao ritmo. Borges trata o Don Quixote como se fosse um livro sagrado, absoluto, um livro perfeito.


[41[ A estrofe em 12 sílabas de três versos, como Dante. Possivelmente Borges usa esta estrofe como uma ilustração de um texto onde nada é improvisado, o poema. Dante como Cervantes segundo Borges produzem um texto perfeito. 


[42] Os versos de improviso são uma intenção do autor, segue uma forma. A divindade é superior, curva-se à literatura, porém dela necessita na comunicação com os homens.


​[43] "No princípio Deus criou os céus e a terra" Gênesis 1:1. Do Hebreu, Bereshit = Gênesis, no começo. Bara : do nada: Elohim : Deus, aquele que veio do céu." A consoante "Bet" é a primeira consoante, ao passo que a vogal "Aleph" é tida como uma consoante fraca. Na Cabala a letra "Bet" "ב‎" o traço superior é Deus, a linha vertical é o que vem do céu e o traço inferior são os humanos na terra. Na Cabala justifica=se começar a Biblia com "Bet" pois o traço vertical significa a conexão entre os homens e Deus. 


[44] Bendizer vem do Latim Bene +dicere, ou Bem Dito. A explicação de que a Bíblia começa com "B" de Bendito, é somente uma forma de expressão, não uma justificativa


​[45] O estudo da Cabala visa exatamente buscar a relações precisas que estão no texto sagrado. .


[46] O poeta Homero não procura no ínicio do canto uma palavra "perfeita", simplesmente pede às Musas, as doze deusas filhas da Memória (Mnemosyne) que lembrem ao poeta cego (acredita-se que o cego pode conversar com espíritos que os vivos desconhecem) os versos da epopeia. O poeta se coloca na posição de um escrivão, não de um compositor criador. Porém o texto homérico não é uma ligação entre os homens e os Deuses, é uma narrativa das ações humanas na qual os Deuses tomam parte. 


​[47] Condescender no sentido que Deus permitiu que os homens tivessem a capacidade da linguagem que mais tarde se transforma na escrita ou seja na literatura. 


[48] O verso metrificado procura um ritmo das palavras e uma forma numérica na associação das sílabas. Associar as palavras a números e encontrar o valor numérico do texto bíblico é tarefa dos estudantes da Cabala. 


[49] Tanto os antigos, gregos e romanos, como os escritores da Bíblia tinham o noção que o papel do autor era transmitir um conhecimento ou sabedoria dos Deuses, ou de Deus, aos homens. A diferença é que os antigos não usavam o texto com uma finalidade de religiosa nem de conduta para ação humana, como o texto sagrado. 


[50] O poema homérico era cantado, como uma canção, e sua criação foi uma inspiração das Musas, daí o sentido de música e lírica, que sucedeu ser  compilado, escrito e lido. 

[51] "A bíblia é a crônica familiar dos judeus" - Jessica, Heine. A nação representando o povo judaico tem um livro como única referência de pátria.