Resenha : O Demônio da Teoria : Literatura e senso comum.

Antoine Compagnon.

Editora UFMG. 2011 - 2a. Ed. ISBN 978-8570418319


Como se deve abordar um texto literário? 

Deve-se por exemplo procurar informações sobre o autor ou o contexto histórico e cultural em que o texto foi escrito? 

O que é mais importante, o estilo ou o conteúdo? 

Haverá uma leitura objetiva, ou tudo depende da subjetividade do leitor? 

Para essas perguntas, entre outras, a teoria literária reivindicou oferecer respostas inovadoras. Essa disciplina, que alcançou seu auge na França nos anos 1960, principalmente com Roland BARTHES (1915-1980), estava na vanguarda dos estudos literários no mundo e sua ambição era fundar uma ciência da literatura. Animada por um real espírito combativo, a teoria literária pretendia revolucionar os estudos acadêmicos e devolver a literatura ao centro das preocupações sociais. Ela denunciou continuamente um determinado número de idéias geralmente aceitas:
já não era possível, por exemplo, acreditar que a intenção do autor determinava a significação de um texto,
que a literatura fala do mundo ou que sua essência é o estilo...
Era necessário acabar com esses “fatos falsos” aceitos com demasiada facilidade pelo sentido comum. A teoria literária não conseguiu atingir seu objetivo.
Parece que o senso comum, tão depreciado, resistiu a todos os ataques:
as intenções do autor despertam ainda nosso interesse;
sentimos ainda que a literatura remete ao mundo e
ainda somos sensíveis a seu estilo...
Ao tomar como foco sete noções que estão no âmago dessas controvérsias literárias  a literariedade,
o autor
o mundo
o leitor
o estilo
a história
o valor
e tentando traçar sua genealogia, Antoine COMPAGNON oferece essa avaliação. Mostra que o fracasso da teoria literária vem de seu hábito de levar a extremos absurdos críticas que poderiam, se assim não fosse, se justificar. Logo, melhor que se deixar apanhar em oposições radicais, Antoine Compagnon opta por uma posição intermediária entre a teoria literária e a (antiga) aproximação acadêmica.Três exemplos — o autor, o mundo e o estilo — em que a oposição entre as duas abordagens é bem definida, vai nos permitir compreender os meandros dessa controvérsia.


O Autor

Para compreender o significado de um texto, o senso comum nos leva a determinar a intenção do autor (o que o autor queria dizer?). Assim,voltamo-nos para aspectos de sua biografia para identificar vestígios dessa intenção. A teoria literária nega a relevância de tal investigação na descrição do sentido de um texto. Na verdade, as intenções da pessoa que compôs um texto nunca esclarecem inteiramente sua significação. Mais do que isso, a significação escapa a ela quando o texto, apartado de sua época de seu ambiente cultural, adquire sentidos que o autor não tinha previsto. O texto literário deve conseqüentemente ser visto como autônomo, e não como a expressão da intenção do autor. Antoine Compagnon reconhece a discrepância entre o que o autor queria dizer e o que seu texto significa (nunca se diz exatamente que se quer dizer). Ainda em sua opinião, não é tão fácil de livrar-se da noção de intenção. Por exemplo, quando nos vemos diante dificuldades devido à obscuridade ou à ambigüidade de um texto, é difícil evitar procurar uma passagem paralela do mesmo autor a fim de esclarecer o sentido do texto em questão. Isso supõe que as diferentes passagens têm em comum alguma coerência (o mesmo espírito,o mesmo tom), e que a coerência implica a intenção. Assim, um defensor coerente da teoria literária, convencido da idéia que um texto deve ser estudado sem referência à intenção, deveria evitar comparar passagens diferentes. Mas todos o fazem. De fato, presumir que nenhuma intenção esteja na base composição de um texto significaria considerá-la o resultado de um processo aleatório, como o decorrente da ação de um macaco digitando num teclado de computador.
O erro da teoria literária parece ter consistido em confundir o sentido de um texto e sua significação.
O sentido é o que permanece estável na recepção de um texto. A significação indica o que muda. O sentido é original e singular. A significação é o resultado da ligação que estabelecemos entre o sentido e nossa própria experiência (histórica, cultural, individual): é plural, variável e aberto. Assim, quando negou a objetividade do texto ao anunciar que sua significação varia de acordo com a época e o ambiente, a teoria literária esqueceu-se de que o sentido continuava fiel a si mesmo.
Se assim não fosse, como seria possível falar da interpretação errônea de um texto? Uma obra pode ser inexaurível, e cada época pode compreendê-la à sua própria maneira, mas isso não significa necessariamente que ela não tem um sentido original. O que é inexaurível é sua significação. Assim a distinção entre o sentido e a significação torna possível esclarecer leituras diferentes de um texto sem eliminar as intenções do autor como um critério da interpretação. Isto não significa que a intenção do autor seja premeditada de modo completamente consciente. A intenção é global: não implica a consciência de todos os detalhes do processo da escrita. Assim como, quando se da uma caminhada, há uma intenção de andar, embora não se premedite conscientemente o movimento de cada músculo, assim também a intenção não pode ser reduzida ao que o autor resolveu escrever. A significação não se encontra no projeto explícito, que não passa de indício. O autor e sua biografia não explicam a obra. Mas o pressuposto de uma intenção permanece ainda assim base de toda interpretação.


O mundo

Em oposição à ideia de que a literatura remete ao mundo (como na “mimesis” de Aristóteles), a teoria literária defendeu a ideia de sua autonomia com relação à realidade. Passou-se a supor que a literatura não mais representava coisa alguma, falava apenas de si mesma; tinha-se tornado auto-referencial: já não havia necessidade de procurar os modelos da Duchesse de Guermantes de Proust.
Não mais se lia para descobrir a realidade das coisas, mas em função das referências que a literatura fazia a si mesma. Essa concepção foi inspirado na teoria de Saussure, segundo a qual a significação dos signos linguísticos é diferencial (resultado de suas relações recíprocas) e não referencial (os signos não se referem às coisas). Aplicado à literatura, isso tornou toda referência à realidade, toda semântica, secundária com respeito à sintaxe e à estrutura da narrativa. Conseqüentemente, estudava-se como o que parecia referir-se à realidade estava na verdade determinado por códigos literários, não sendo senão os “effets de réel” que criavam a ilusão de dar acesso à realidade. Por exemplo, de acordo com a teoria literária, um detalhe (frequentemente um objeto) mencionado em uma descrição mas não importante para a história, era um signo convencional e arbitrário que indicava simplesmente ao leitor que a descrição em questão era realista: o detalhe (o objeto descrito) não denota um objeto real, tendo antes uma conotação de realismo, um “effet de réel”.
Como a denúncia da opressão, essa parte do espírito de época, a teoria literária chegava a afirmar que essa conotação veiculava uma ideologia burguesa repressiva. Antoine Compagnon concede que um significante não dá acesso direto e transparente a um referente, que um romance não descreve a realidade como ela é. Mas isso não significa, afirma ele, que língua não seja referencial, ou que a literatura nunca descreve o mundo. E, de fato, como pode a teoria literária simultaneamente negar que a língua tem alguma relação referencial com realidade e usa esta mesma língua para determinar suas propriedades reais? Fazê-lo é reconhecer que é possível usar a língua para referir-se a algo que realmente existe, como a própria língua ou a literatura. O paradoxo é conseqüentemente que a função referencial da língua tenha de ser usada para negar sua própria existência! O erro da teoria literária foi ter passado da idéia da arbitrariedade do signo à arbitrariedade da língua. Ela conclui disso que a língua era um sistema independente da realidade que, com sua estrutura e suas palavras, descreve essa realidade de maneira arbitrária e constituía assim uma visão do mundo de que seus falantes permanecem prisioneiros. Entretanto, não é, por exemplo, porque descrevem as cores do arco-íris diferentemente que diferentes línguas não descrevem o mesmo arco-íris. Seja como for, é usando a língua que se pode observar que aqueles que falam outra língua descrevem a realidade de uma maneira diferente. Para isso, deve ser possível concordar com relação aos objetos que são descritos; a língua tem de falar sobre a realidade. Não se pode, conseqüentemente, concluir que o fato de a literatura falar sobre a literatura faz que ela não fale sobre o mundo.


O estilo

Outro tema de discórdia é a noção de estilo. Tendo eliminado a intenção e a representação, a Teoria Literária anunciou a morte da estilística. A ciência da linguagem tinha de ir além do estilo, um conceito “pré-teórico”. A idéia do estilo se apoiava na possibilidade de sinonímia, que permitia dizer a mesma coisa de maneiras diferentes, isto é, com diferentes estilos. Tratava-se do conceito de uma dualidade entre o conteúdo e a forma, entre a substância e a expressão ou entre a matéria e a maneira, oposições binárias que se apoiavam no dualismo entre pensamento e linguagem. A teoria literária julgou obsoletas todas essas polaridades. O pressuposto que estava na base da estilística apoiava-se num círculo vicioso: para isolar o conteúdo (a substância), era necessário analisar a expressão (a forma), mas para analisar a expressão era necessário já ter determinado o conteúdo. Não era possível interpretar a matéria sem descrever a maneira, ou descrever a maneira sem interpretar a matéria. Uma descrição estilística deve conseqüentemente ser vista, ao mesmo tempo, como interpretação semântica: analisar o estilo de um poema é determinar seu significado. A teoria literária considerou conseqüentemente que falar de uma maneira diferente era dizer algo diferente, que duas expressões nunca significavam exatamente a mesma coisa. A sinonímia era assim uma ilusão e a estilística deveria ser abandonada. Tem-se não obstante de admitir que o estilo ainda é discutido e que esta noção deve corresponder a algo, dado que é possível limitar um autor por seu estilo. Mas como reconhecer o estilo quando se sustenta que dizer algo de maneira diferente deve diferentemente dizer outra coisa? Para Antoine Compagnon, isso é possível se se admitir que seja necessária a sinonímia é pedir demais. Para o estilo existir, tudo o que é necessário é haver seja maneiras diferentes de dizer coisas bem semelhantes, mas não perfeitamente idênticas. Assim, pode-se dizer mais ou menos a mesma coisa com estilos muito diferentes. Abandonar a sinonímia estrita não abole, conseqüentemente, o estilo. Mais uma vez, Antoine Compagnon opta por uma conciliação entre o estilo como a essência da literatura e o estilo como uma ilusão. Para completar a apresentação desse estimulante livro, seria necessário discorrer sobre os debates sobre o que torna literário um texto, sobre o lugar do leitor, o relacionamento entre a literatura e a história e o valor de textos literários. Apresentando em detalhe as polêmicas que cada uma dessas questões inspirou, Antoine Compagnon mostra que uma concepção excessivamente sistemática da literatura não pode escapar à contradição. A pergunta que os estudiosos da literatura não cessam de fazer — e que naturalmente é: o que é literatura — permanece assim não respondida.
Esse livro, ao fazer uma clara apresentação dos meandros dos debates literários, é também uma elegante lição da modéstia que a teoria requer.