a construção do leitor

Extraído de : Umberto Eco, Pós-Escrito ao "O nome da rosa" ,
traduzido do original
Postille a "Il nome della Rosa" por Letizia Z. Antunes e Álvaro Loerencini.
Ed. Nova Fronteira, 1985.

Ritmo, respiração e sacrifício... Para quem, para mim?

Não, claro, é para você leitor.

Escreve-se pensando em um leitor, assim como o pintor pinta pensando no observador. Depois de uma pincelada, recua dois ou três passos e estuda o efeito: isto é, olha o quadro como deveria olhá-lo o espectador, ao admirá-lo pendurado na parede, em condições de luz adequada.

Quando a obra está terminada, instaura-se um diálogo entre o texto e os seus leitores (o autor fica excluído). Enquanto a obra está sendo feita, o diálogo é duplo. Há o diálogo entre o texto e todos os outros textos escritos antes (só se fazem livros sobre outros livros e em torno de outros livros) e há o diálogo entre o autor e seu leitor modelo. Já teorizei sobre isso em outras obras como o papel do leitor ou mesmo antes em Obra Aberta, e não sou eu o inventor da ideia.

Pode acontecer que o autor escreva pensando em determinado público empírico, como faziam os fundadores do romance moderno, Richardson ou Fielding ou Defoe, que escreviam para os mercadores e suas mulheres, mas Joyce também escreve para o público, pensando em um leitor ideal acometido de uma insônia ideal. Em ambos os casos, quer se pretenda falar para um público que está ali fora da porta, com o dinheiro na mão, quer se pretenda escrever para um leitor futuro, escrever é construir, através do texto, um modelo específico de leitor.

Que significa pensar num leitor capaz de superar o obstáculo penitencial das primeiras cem páginas? Significa exatamente escrever cem páginas com o objetivo de construir um leitor adequado para as páginas seguintes. Existe um escritor que escreva somente para a posteridade? Não, nem mesmo quando ele afirma isso, porque, como não é Nostradamus, só pode imaginar os pósteros segundo o modelo de seus contemporâneos.

Existe um autor que escreva para poucos leitores? Existe, se entendermos por isso que o Leitor Modelo que ele imagina tem poucas possibilidades, segundo suas previsões, de ser personificado pela maioria. Mas mesmo neste caso o escritor escreve com a esperança, não muito secreta, de que justamente o seu livro crie, em grande número, com muitos representantes desse novo leitor desejado e procurado com tanta pertinácia, postulado e encorajado pelo seu texto.

A diferença, se existir, é entre o texto que quer produzir um leitor novo e o texto que procura ir ao encontro dos desejos dos leitores tais como eles são. Neste segundo caso temos o livro escrito, construído segundo um formulário feito para produtos em série, o autor faz uma espécie de análise de mercado e se adapta a ele. Vê-se de longe que ele trabalha com fórmulas, basta analisar os vários romances que escreveu e observar que em todos, mudando os nomes, os lugares e as fisionomias, conta sempre a mesma história. Aquela que o público já pedia. Quando o escritor planeja o novo, e projeta um leitor diferente, não quer ser um analista de mercado que faz a lista dos pedidos expressos. Quer revelar o leitor a si próprio.

Se Manzoni tivesse de atender ao que o público pedia, ele tinha a fórmula, o romance histórico de ambientação medieval, com personagens ilustres, como na tragédia grega, reis e princesas (e não é isso que ele faz em Adelchi?), grandes e nobres paixões, façanhas guerreiras e celebração das glórias itálicas numa época em que a Itália era a terra dos fortes.

Em vez disso, o que faz Manzoni? Escolhe o século XVII, época de escravidão, e personagens ignóbeis, onde o único espadachim é um traidor, e não fala de batalhas e tem a coragem de sobrecarregar a história com documentos e editais... E todos, todos gostam, cultos e incultos, adultos e crianças, beatos e anticlericais. Porque ele teve a intuição de que os leitores de seu tempo deviam ter aquilo, mesmo que não soubessem, mesmo que não pedissem, mesmo que não acreditassem que aquilo fosse legível. E como ele trabalha, de lima, serrote e martelo, e depura sua língua, para tornar saboroso o seu produto, para obrigar os leitores empíricos a se transformarem no leitor modelo que tinha em mente.

Manzoni não escrevia para agradar ao público tal como era, mas para criar um público ao qual o seu romance não podia deixar de agradar. E tanto pior se não agradasse, basta ver com que serenidade fala de seus vinte e cinco leitores. Vinte e cinco milhões queria ele.

Que leitor modelo eu queria, quando estava escrevendo? Um cúmplice, claro, que entrasse no meu jogo. Eu queria tornar-me completamente medieval e viver na Idade Média como se esta fosse minha época (e vice-versa). Mas ao mesmo tempo eu queria, com todas as minhas forças, que se desenhasse uma figura de leitor que, superada a iniciação, se tornasse meu prisioneiro, ou melhor, prisioneiro do texto e pensasse não querer nada mais do que aquilo que o texto lhe oferecia. Um texto quer ser uma experiência de transformação para o próprio leitor.

Você acha que quer sexo, e intrigas policiais em que no fim se descobre o culpado, e muita ação, mas ao mesmo tempo você se envergonha de aceitar uma venerável pacotilha, com mãos de mulher morta e ferreiros assassinos. Pois bem, eu vou lhe dar latim, poucas mulheres, teologia aos montes e sangue aos litros, de forma que você diga "mas isso é falso, não aceito!" E a essa altura você já será meu, e experimentará o calafrio da infinita onipotência de Deus, que desfaz a ordem do mundo. E depois, se você for honesto, perceberá a maneira como o atrai para a armadilha, porque, afinal, eu lhe dizia isso a cada passo, advertia-o claramente de que o estava arrastando para a danação, mas o interessante nos pactos com o diabo é que são firmados sabendo-se muito bem com quem se está tratando. Do contrário, por que ser premiado com o inferno? E como eu queria que fosse considerada agradável a única coisa que faz alguém tremer, isto é, o calafrio metafísico, só me restava escolher (entre os modelos de trama) a mais metafísica e filosófica, o romance policial.